Vidas trans ocupam espaços de representatividade e reforçam caminhada de luta e esperança
“Vivemos em um mundo em que podemos partir a qualquer momento. Em que nossa gente é só uma memória que o resto do mundo ficaria feliz de esquecer. Tudo o que nos resta é o agora”. A frase é da série Pose (2018), disponível na Netflix, com as três temporadas completas. O enredo da produção se localiza em Nova York, na década de 1980, e mostra casas em que pessoas LGBTQIAP+ são acolhidas, depois de serem expulsas do convívio familiar. Além disso, retrata o universo luxuoso dos bailes, protagonizados, também, por pessoas negras e latinas.
Até a cantora Madonna capitalizar a categoria “pose”, no início dos anos 90, as pessoas que produziam e se apresentavam nos bailes sofriam muito preconceito. A cultura ballroom era vista como lugar dos marginalizados, por isso, a apropriação da história dialoga com as situações retratadas na série, e reverbera na sociedade, que impulsiona a evidência dessa comunidade.
Nesse sentido, dia 29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Desde 2004, a data relembra quando 27 transexuais e travestis se dirigiram ao Congresso Nacional para exigir seus direitos. Após o acontecimento, o Ministério da Saúde criou um Comitê Técnico, especialmente para essa população, e lançou a campanha “Travesti e Respeito”, cultivada até os dias atuais.
No entanto, vem de muito antes o registro da primeira travesti brasileira. Em 1591, Xica Manicongo foi forçada a vir para o Brasil na condição de escrava. Fincou morada em Salvador, e apesar das inúmeras denúncias recebidas pelo seu jeito de ser, sua resistência é um marco histórico.
Para ler o cordel na íntegra: usercontent.one/wp/www.arquivocompa.org/wp-content/uploads/2021/01/cordel-sertransneja.pdf
A letra T da sigla LGBTQIAP+, da qual Xica Manicongo pertence, representa as travestis, transexuais e transgêneros: pessoas que não se identificam com o gênero que lhe foi imposto.
Mas quem dera tudo fosse tão fácil quando nomear todas as possíveis identidades de gêneros. Grande parte da vida dessas pessoas é marcada pelo preconceito, violência, falta de oportunidades e indicadores desumanos.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), só no 1º semestre de 2021, 89 pessoas trans foram mortas. Destas, 80 foram assassinadas e 9 cometeram suicídio. “Houveram ainda 33 tentativas de assassinatos e 27 violações de direitos humanos. O país naturalizou um processo de marginalização e precarização para a aniquilação das pessoas trans”, aponta o balanço da Antra.
Uma dessas vítimas foi Crismilly Pérola. A cabeleireira teve a vida brutalmente interrompida, em julho de 2021, na Várzea, Zona Oeste do Recife. Só em julho, foram três casos motivados pela transfobia, na capital pernambucana.
Os números são assustadores, o que comprova a pesquisa realizada pela ONG Transgender Europe, que revela que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. De acordo com a União Nacional LGBT, 35 anos é a expectativa de vida de um transgênero no país.
Desafiando o que lhe é esperado, Israel Teixeira, de 24 anos, é estudante de Jornalismo e já trabalha na sua área. Aos 18 anos, deu início ao processo de se entender como pessoa trans. “Foi muito natural e espontâneo. Meu ciclo social sempre foi de pessoas LGBT, então rolou uma identificação com as pessoas com quem eu já convivia. Através da Internet, de vídeos do YouTube e lendo sobre, eu me identificava com aquelas pessoas, com o processo de aceitação, com a vivência. Eu me aceitei e entendi que aquilo era o que eu era e tudo bem”, comenta Israel.
INVISIBILIDADE E MUDANÇAS
“Ninguém dá emprego a travesti, não. Se você não souber fazer uma maquiagem, um cabelo, se você não souber ser artista, vai acabar na pista”. O trecho é da novela “A força do querer” (2017), transmitida pela Rede Globo. A trama trouxe o processo de identificação da personagem Ivana (Carol Duarte) com o sexo masculino, e mostrou a sua transição para Ivan. Por ser transmitida na programação da TV aberta, a novela possibilitou espaços de debates necessários.
O lema da ANTRA é “resistir pra existir, existir pra reagir”, e espelha a realidade de lutas da comunidade trans. “Nós precisamos nos esforçar duas vezes mais para conseguir um espaço, para conseguir aceitação. Eu passei três anos da minha vida, antes de entrar na faculdade, procurando emprego e eu não conseguia. Não por ser trans, somente, mas por falta de qualificação”, confessa Israel.
A negação de lugares sociais e educacionais implanta a ideia errônea de que os ideais de futuro não são possíveis para as pessoas LGBTQIAP+. Situação igualmente similar aconteceu com o estudante Teixeira. “Eu nunca enxerguei a faculdade, um curso superior como prioridade. Não tinha essa pretensão”, afirma. Contudo, ao se identificar com algumas áreas da graduação, resolveu apostar. “Eu preciso provar, mostrar pro mundo de que eu sou capaz, que eu posso ser uma pessoa qualificada, um bom profissional, mesmo eu sendo trans, porque minha identidade de gênero não define a minha capacidade. Então, através do Enem, consegui uma bolsa na Universidade Católica de Pernambuco”, conta.
O balanço realizado pela Antra, em 2021, mostrou que apenas 0,02% das pessoas trans conseguem cursar o ensino superior. Israel demonstra o orgulho que sente ao ocupar esse lugar, entretanto, lamenta que mais pessoas não consigam se apropriar. “Ainda é muito carente de pessoas trans. A gente sofre muito preconceito no âmbito educacional, então não tem como uma pessoa trans se sentir estimulada a fazer um curso superior. Grande parte, sai da escola porque não são respeitadas, sofrem transfobia e preconceito, o que acaba as colocando numa posição de marginalização”, expõe o estudante.
Convivendo com constantes dificuldades de acesso, a atual pesquisadora e analista de dados de segurança pública, travesti negra, ativista na causa de igualdade racial, LGBT e Direitos Humanos e estudante de Psicologia, Dália Celeste, de 26 anos, relembra seu processo social. Desde criança, sentia-se desconfortável com o gênero que não lhe representava, mas foi na adolescência que afirmou a identidade feminina, ao acessar outras travestis.
Com isso, as oportunidades para Dália ficaram mais custosas. “Eu ingressei no ensino superior após um grande processo de dificuldade. Fiz parte de um pré-vestibular na federal a qual fui agredida e, com isso, saí do espaço, devido ao medo da transfobia”, confessa. “A academia ainda é um lugar que não me representa, pois muitas pessoas trans e travestis não conseguem ter esse acesso ao espaço, e o sistema como sociedade nos impõe a exclusão deste local. Mas é importante, para mim, mostrar que nós também temos capacidade de construir saberes”, completa.
A possibilidade de buscar informações facilitou a transição de Israel, porém, infelizmente, não é a realidade da maioria. Por isso, quanto mais pessoas trans na TV, na Internet, no rádio e no convívio social, mais a representatividade dessa população se fortalece.
“Quando eu paro pra pensar, não acredito que cheguei até aqui. É uma conquista ocupar esses espaços, mas eu espero que eu não seja o único a fazer isso. Todos merecem realizar seus sonhos, fazer um curso, se realizar enquanto pessoa e também como profissional. Não é um direito só das pessoas cisgêneras, mas de todos”, reconhece Israel.
TRANSFOBIA NO BBB
É a segunda vez que o maior reality brasileiro tem participantes trans. A primeira foi Ariadna, no BBB 11, que foi eliminada na primeira semana do jogo. Nesta edição, a coroa passou para a cantora e atriz Linn da Quebrada.
“Eu sou complexa, sou contraditória, trabalho com o erro, com o fracasso… Eu sou o fracasso! Eu fracassei! Sou o fracasso de tudo o que esperavam que eu fosse… Não sou homem, não sou mulher, sou travesti!”, declarou Linn, em uma dinâmica da casa.
A cantora tem o pronome “ela” tatuado na testa. E mesmo desenhado como prefere ser chamada, sofreu transfobia dos participantes que insistiam em lhe tratar no masculino.
Na noite do dia 23, o apresentador do Big Brother Brasil, Tadeu Schmidt, chamou atenção dos confinados e pediu para que Linn explicasse o motivo da tatuagem. A origem veio por causa de sua mãe, para que se lembrasse de lhe tratar no feminino, mas a indicação serve para todos. “Ficou na dúvida? Lê, e daí vocês lembram que eu quero ser tratada nos pronomes femininos”, salientou.
Vale destacar que para se dirigir às pessoas que se identificam como travestis é sempre utilizado o pronome feminino: ela/dela.
O debate ganhou força, aqui fora, e levantou discussões sobre pluralidade, gênero e diversidade. E trouxe à tona que apesar dos ataques, não existe uma lei protetiva exclusiva destinada à pessoas trans. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu que a Lei nº 7.716 que trata dos crimes de discriminação racial, efetive o alcance para os crimes de transfobia.
ESPELHO DE SI MESME
“Eu me sinto muito realizado comparado há alguns anos. Depois de muita luta, eu consigo me olhar no espelho e eu me reconheço como homem. Eu me aceito enquanto um homem trans. E é a partir disso que eu reflito: por que eu vou permitir que as pessoas não me aceitem ou não me respeitem, se eu lutei tanto para me reconhecer?”, questiona Israel.
Se ver diante de um cenário de representatividade é significativo. E a ocupação de pessoas trans no legislativo brasileiro auxilia no crescimento da multiplicidade na política. A eleição de 2018 teve um número importante de candidaturas de mulheres trans: foram mais de 50!
A primeira transexual eleita deputada estadual no Brasil, foi Erica Malunguinho (PSOL), em São Paulo. Por mandatos coletivos, Erika Hilton (PSOL), pela Bancada Ativista, também em São Paulo, e Robeyoncé Lima (PSOL), da Juntas, em Pernambuco, foram escolhidas para representar a população.
Em 2020, com mais de 50 mil votos, Erika Hilton foi eleita vereadora da cidade de São Paulo, a mulher mais bem votada, e a primeira trans a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal paulistana.
Apesar das dificuldades do CIStema, cada vez mais o retrato social é diversificado. “É importante que pessoas trans e travestis estejam nesses espaços de representatividade, pois mostra que somos capazes, e possuímos o direito à humanidade de também ser e estar por igual nesses locais. Também para que a sociedade consiga enxergar nossos corpos além da marginalização, e que outras pessoas trans, que estão vindo na nova geração, entenda que somos mais que um corpo e podemos ir para além do lugar de negação que nos lançam”, alega Dália.
“Sexualidade e identidade de gênero não define ninguém, então, é muito gratificante estar nesse processo profissional. As pessoas estão ouvindo as nossas vozes”, comenta Teixeira.
Para se sentir completo no seu corpo, Israel criou uma vaquinha para realização da sua tão sonhada mastectomia, que consiste na cirurgia de retirada das mamas. Para contribuir e compartilhar, acesse: www.vakinha.com.br/vaquinha/mastectomia-do-rael.
PESSOAS TRANS PARA CONHECER E SEGUIR
Dália e Israel compartilharam perfis de pessoas trans que ocupam e resistem na Internet. Confira os nomes abaixo:
Amanda Palha: @trv.amandapalha
Erika Hilton: @hilton_erika
Erica Malunguinho: @ericamalunguinho
Neon Cunha: @neoncunha
Gabriela Loran: @gabrielaloran
Alina Durso: @alinadurso
Thiago Peniche: @thiagopeniche
Ana Flor: @tdetravesti
Anne Mota: @annemotareal
Paulo Vaz: @popo_vaz
Matheus Vidal: @mathvidalrosa
Dante Olivier: @olivierdante
Jarda @jardaraujo
Jonas Maria: @jonasmariaa
Sophia Rivera: @transfeminista
Jovanna Cardoso: @jovannacardoso
Ágatha Íris: @agatapauer
*pessoa não-binária de 21 anos, estudante de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi brutalmente assassinada por traficantes.
Texto: Maria Clara Monteiro/Cendhec
Fontes:
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