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Sou uma, mas não sou só: apagamento da identidade negra e o direito à moradia no Recife

Com 33 anos, Lidiane Santana pode ver a casa histórica em que nasceu, localizada em Vila Esperança, ser derrubada para a construção de uma ponte


A casa da família está erguida desde o século XVI, quando era uma senzala


Fotos: Alcione Ferreira / Cendhec

Texto: Mariana Moraes / Cendhec


Em 1971, o vassoureiro João Severino de Santana, mais conhecido como Seu Carroça, e a bordadeira e pescadora Severina Selira de Santana saíram de Nova Descoberta, na Zona Norte da Capital Pernambucana, com seus nove filhos. À procura de moradia, instalaram-se nas terras que um dia abrigaram o Engenho Monteiro, construído ainda no século XVI. A família encontrou um local espaçoso, pé direito alto, sem vizinhos em volta. A casa era emoldurada pelo rio Capibaribe, à época límpido, que se tornou a principal fonte de água e também local onde lavar roupas. As mangueiras espalhavam-se pela região, e eram o principal divertimento das crianças, que escalavam as árvores para pegar frutos. Porém, para Linda Santana, uma das filhas do casal, foi difícil enxergar aquele ambiente como lar. Com seus cinco anos, os olhos de criança focavam na falta de telhas, nas marcas de fogo na parede, deixadas por antigos donos, e nas correntes instaladas perto das poucas portas da estrutura. Grilhões que um dia serviram para prender e torturar pessoas que tinham a sua mesma cor.


Com muito trabalho, conseguiram ressignificar o que um dia foi palco de muita dor para o povo negro. João reformou a casa, dividiu cômodos, fez janelas, reparou portas. Tudo para receber a família que crescia. Não mexeu na fachada, pois sempre foi lhe dito que era histórica. Por dentro, muitas transformações, casamentos, festas de 15 anos e gafieiras. Por fora, a memória intocável de uma antiga senzala. O casarão tornou-se ponto de encontro e de fé. Umbandistas, fortaleciam sua ancestralidade também na religião. Às sextas, João vestia-se de branco, colocava seu turbante, dançava e cantava pontos, expressões que foram proibidas aos seus antepassados e até hoje são vistas com intolerância.

Lidiane acompanhada por sua mãe, Linda, e suas filhas Kayllane e Ellys, de 11 e 3 anos, respectivamente.


A casa estava habitada durante a cheia de 1975, momento em que o Capibaribe cobriu 80% do Recife. Mesmo com a inundação, Seu Carroça teimava em sair. Não queria perder seu espaço, nem mesmo para aquele gigante. Os registros históricos deste período em que 104 pessoas morreram outras 350 mil ficaram desalojadas são poucos. Não há, por exemplo, materiais organizados e catalogados sobre o incidente nos museus e centros de pesquisa do Recife. Mas, a pintura da parede da sala de estar, eterniza o nível que a água atingiu entre os dias 17 e 18 de julho daquele ano.





“Quando eu olho para a casa lembro muito do meu avô, ele estava vivo até meus cinco anos de idade, então eu tenho muitas memórias. Lembranças até da morte dele, que foi aqui dentro, no quarto. Ele foi velado aqui na sala. Sei que na cheia de 75 foi um período bem difícil, meu avô não queria sair daqui. Teve que sair pelo telhado, alguns moradores fizeram resgate. A marca da água ficou. Até hoje minha mãe mantém essa pintura porque meu avô dizia que era pra lembrar, nunca deixou ninguém passar dessa marca”, diz Lidiane Santana. Hoje com 33 anos, a neta de João e filha de Linda tem medo de que as lembranças, que sua família tanto lutou para manter, sejam arrancadas com a desapropriação de Vila Esperança, nome dado a comunidade que, desde de 1994, é considerada uma Zona Especial de Interesse Social do bairro de Monteiro.


“Só saio daqui quando o trator estiver passando por cima”


Mesmo com o título de ZEIS, que garante ao local proteção por lei, a Prefeitura do Recife autorizou a derrubada de 58 casas na comunidade, para retomar construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão, construção que deve ligar o bairro do Monteiro até o da Iputinga, na Zona Oeste. Em agosto, algumas casas amanheceram marcadas com números vermelhos, sem qualquer aviso prévio. Dentre elas, a casa Santana. “Eu não consigo entender, não entra na minha cabeça como que eu passo 33 anos aqui e meu pai nunca pôde bater um prego na frente de casa, nunca pôde reformar como ele queria, nunca pôde descaracterizar porque era tombado, era do Ipham, e hoje vem esse “progresso” - só na cabeça do prefeito e governador – pra tirar essa casa daqui. E a história da gente? E a história da casa? E a história da Vila? Onde vai ficar tudo isso? Vai virar escombro?”, indaga.

Lidiane divide a casa com o pai, a mãe, o marido e suas duas filhas, de 03 e 11 anos. No mesmo local, começou a gerir a sua pizzaria delivery, aproveitando a estrutura da cozinha que acabaram de reformar e era o sonho de Linda. “Eu trabalho aqui, eu sobrevivo do meu trabalho, eu moro aqui. Querem tirar tudo de mim em uma porrada só. Eles ofereceram R$ 32.000, mas com esse valor não dá pra comprar uma casa em lugar nenhum. Depois de muito gritar, depois de muito aparecer na televisão, decidiram que não queriam a minha casa toda, só o meu quintal e cozinha. Dei o meu preço então, para a retirada de parte da minha casa e local de trabalho, mas eles me responderam que esta é uma área que não é valorizada. Mas, se ali é uma área desvalorizada, o prédio da Moura Dubex, que estão construindo ao lado, também deveria estar desvalorizado. Será que com 32 mil consigo comprar um apartamento lá? Já que é tão desvalorizado, porque não procuram outro lugar para crescer?”


O edifício citado, na verdade, equivale a 48 vezes o valor oferecido a Lidiane. No site da imobiliária Eduardo Feitosa, consultado no dia 19 de novembro de 2021, o valor de um apartamento de quatro quartos, neste condomínio que oferece brinquedoteca, mini campo, piscina, playground e salão de festas, chega a R$ 1.541.789,49. Também não é vendido como área desvalorizada, e é apresentado como um dos “melhores bairros da cidade. Mais de 2.000 m² de área verde, piscina, área fitness e muito mais”. A planta disponibilizada pela construtora Moura Dubex também preocupa. No projeto, a Rua Temporal, onde Lidiane mora há 33 anos não mais existe. Tendo sido substituída por “Rua Projetada”. As casas construídas há décadas também desapareceram, dando espaço para uma calçada e jardim.


A Prefeitura do Recife divulga amplamente que a construção da ponte foi discutida com a população da área, informação que é rebatida pela comissão política de moradores de Vila Esperança, da qual Lidiane faz parte. “O prefeito coloca nas redes sociais “estamos dialogando com os moradores”. Onde? Quando? Estão tentando difamar a área, dizendo que é perigoso, que só tem bandido. O pessoal da Defensoria Pública, do Ministério Público cansou de vir aqui e ser bem recebido. Vou morrer perguntando: Se é um local sem valor, por que mexer? Esquece, finge que morreu. Sentimos que somos coagidos, vivem dizendo ‘se formos pro jurídico será pior, vão oferecer menos’. Mas eu não vou me calar. Só saio daqui quando o trator estiver passando por cima.”


O prefeito, eleito em 2020 pelo PSB, reside em Casa Forte, a menos de 2km da comunidade, no Monteiro. Segundo João Campos, para estas famílias será construído um conjunto habitacional, chamado Vila Esperança, com 75 apartamentos, “dividido em dois blocos, com térreo mais quatro andares, um com 40 unidades e o outro com 35.” A gestão promete também uma horta, pomar, playground, bicicletário, espaço para coleta seletiva e equipamentos para eficiência energética.

As casas disputam espaço com gigantes edifícios


Promessa que parece distante para os moradores do local, que precisariam desocupar suas residências antes de receber novos espaços, a troco de um auxílio moradia, que chega apenas a R$ 200,00 na cidade com o aluguel mais caro do país, ou indenizações abaixo do que realmente custaria uma casa. O cenário parece ainda menos animador quando se tem em vista que, em 2019, Pernambuco estava entre os dez estados que menos entregaram os habitacionais prometidos pelo Minha Casa Minha Vida, de acordo com dados do Ministério da Integração.


“Sou uma, mas não sou só”


“Boa parte dos meus amigos continuam morando aqui. Nossa casa está aqui há muito tempo, mas quem foi chegando depois foi se tornando amigo. Todo mundo conhece todo mundo, muita gente tá aqui até hoje, fez filhos que se criaram aqui. Foi um vínculo que deixou de ser de vizinhos para ser de família”, explica Lidiane. “A desapropriação está sendo difícil. A história dessa ponte já existia desde dos meus avós, porém não passaria por onde está vindo agora. Seria pela 19 de Abril, local que já tem uma ponte. Achávamos que não iria mexer com tantas famílias como está sendo agora, principalmente as mais antigas”.


A luta de Lidiane é por toda uma nova geração e pela memória de seus ancestrais


Esse sentimento de perda, de violência, de ser obrigado a se deslocar, mexe com uma marca sensível do passado. “Eu não quero passar aqui amanhã e ver essa casa usada como salão de festas de um belo prédio. Sabemos que é isso que acontece. Muitos casarões viram boates de riquinhos. E as festas do meu avô? E as músicas dele?”, lamenta. “Pra mim é muito difícil. É algo ancestral, é luta, é resistência. Negros sempre foram marginalizados, e torturados. Até hoje continua, de outras formas, mas continua.”


Segundo Lidiane, a casa também fala. “Tem gente que não acredita, mas eu lembro, quando era criança, de escutar correntes arrastando. Na época tinha medo, porque não entendia. A gente ainda escuta. Já estamos tão acostumados que nem ligamos mais. Eu fico pensando em como vou contar essas histórias pros meus netos no futuro, sem ter a casa pra mostrar. Como vou dizer que esse lugar existiu se destruírem ele? Essa casa pra mim é tudo. É história. É lar. É olhar pra trás e perceber que eu tenho uma identidade. Aqui tem a história dos meus avôs, a história da religião da gente. Pode me chamar de macumbeira. Tenho tanto orgulho dos meus ancestrais, dos meus orixás, tanto amor pela minha religião. Mesmo sabendo o quanto é e já foi sofrido fazer parte dela. Antes de dar entrevista, precisei pedir permissão. Expliquei que era para um trabalho sério, que era pra que mais pessoas conheçam suas histórias. Fui ali na minha jurema, firmei minha cabeça e coloquei uma guia. Sou uma, mas não sou só.”



Assim como Vila Esperança, outras comunidades e ocupações sofrem com a especulação imobiliária e ordens de despejo. Durante a pandemia, de acordo com levantamento da Campanha Despejo Zero, o número de desapropriações cresceu 340%. A maioria dessas famílias é negra. Apenas após muita ação popular, o projeto de lei que impede esse tipo de violência durante crise sanitária foi aprovado. “A pressão e opressão existem e vão existir sempre. É uma luta que vai ser difícil, mas temos que morrer tentando. Alguém vai conseguir. Não podemos esmorecer, não podemos nos amedrontar. O que eu digo para as outras Zeis é que lutem, se unam e lutem. Lutem por suas casas. Tem muito almofadinha que quer passar por cima da gente como se não fossemos nada, mas temos que correr atrás dos nossos direitos, proteger nossas histórias.”


O Cendhec


Com 32 anos de atuação, o centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, organização não governamental sem fins lucrativos, tem por objetivo defender e promover direitos às crianças, adolescentes, moradoras e moradores de assentamentos populares e grupos socialmente excluídos.


Na vanguarda dos direitos humanos e inspirados pelos ensinamentos de Dom Helder Camara, líder que dedicou sua vida à proteção de pessoas vulnerabilizadas, principalmente durante regimes totalitários, temos por missão contribuir para a transformação social, rumo a uma sociedade democrática e popular, equitativa, que respeite as diversidades e sem violência. No início deste ano, a ong se aproximou de Vila Esperança, com reuniões para conhecer o espaço e os moradores, escutas ativas para entender as suas demandas e aconselhamentos no campo jurídico.


Para contribuir com as ações desse centro tão importante para os Direitos Humanos, faça uma doação:

Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social

Banco 237 – Bradesco S.A.

Agência: 1230-0

Conta Corrente: 39630-3

Código Iban: BR86 6074 0123 0000 0396 303c 1

Código Swift: BBDEBRSPRCE

CNPJ. 24.417.305/0001-61


Fontes:

https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2019/05/14/apos-dez-anos-678percent-dos-imoveis-do-minha-casa-minha-vida-foram-entregues-em-pernambuco.ghtml

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