“Quando morar é um privilégio no Brasil, ocupar é um direito”: Aniversário do Estatuto da Cidade
Morar. Verbo que transmite encontro, acolhimento e pertencimento. Sinônimo de viver. Fincar raiz, habitar um lugar, existir e resistir. Garantia que deveria ser básica, no entanto, tornou-se privilégio.
Mais de 200 mil pessoas se encontram em situação de rua no Brasil. Apesar de ser de 2020, este é o dado mais recente, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), as mulheres e as crianças são, consideravelmente, grande parte desse número, estimado, hoje, em meio milhão de brasileiros.
Há, ainda, os constantes riscos de despejos. Identidades, lembranças e histórias que são reféns de uma necropolítica. Quem deveria proporcionar segurança, apunhala e vulnerabiliza.
De acordo com a Campanha Despejo Zero, entre agosto de 2020 e outubro de 2021, o número de famílias ameaçadas de despejo cresceu em 554%. Em março de 2022, a porcentagem subiu para 602%. A última atualização, realizada em maio do presente ano, revelou o aumento de 655%, que corresponde a mais de 569 mil pessoas. São pelo menos 97 mil crianças e 341 mil mulheres.
“Os constantes riscos de despejos da população com acesso frágil ou inexistente às políticas sociais é proporcional a atual conjuntura de desproteção que vivemos no Brasil. No campo da defesa do Direito à Cidade expressa-se no elevado déficit habitacional e na precariedade da condição de vida das famílias, cuja maioria são chefiadas por mulheres, onde a alternativa possível de moradia é em áreas de risco”, aponta Lorena Melo, assistente social do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec).
Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no campo, 30 mil famílias podem ser despejadas. As moradoras mais atingidas são as mulheres negras e mães solos, consequência que reverbera no cenário atual do país de desamparo social, forçando a pressão popular no enfrentamento por melhorias e garantia dos direitos.
PANDEMIA DA COVID-19 AGRAVA NÚMEROS
Desde outubro de 2021, a Lei 14.216/2021 garante a suspensão de ordens de despejo e/ou remoção de imóveis urbanos e rurais. A contar de dezembro de 2021, o prazo da liminar vem sendo adiado. A decisão é fruto de manifestações realizadas em todo o Brasil. Milhares de pessoas aderiram à Campanha Despejo Zero e entoaram o canto de prorrogação do parecer. Recentemente, o pedido foi aderido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que determinou que até 31 de outubro de 2022 estão proibidos os despejos.
Porém, mesmo com a existência da medida, mais de 125 mil brasileiros foram despejados de forma irregular. Dentre estes, mais de 21 mil eram crianças e 75 mil mulheres. O crescimento é de 393%. É perceptível, portanto, que esse triste progresso tem relação direta com a pandemia da Covid-19, que inflama a instabilidade política, econômica e social e deixa os moradores à mercê de uma dura realidade.
“A luta dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil tem sido no sentido de defender o direito humano à moradia digna para quem necessita. E no nosso país quem necessita são os/as trabalhadores/as, na sua grande maioria mães solo, que são responsáveis, além dos/as filhos/as, pelas pessoas idosas. Se caracteriza pela historicidade, universalidade, relatividade, irrenunciabilidade, unidade, indivisibilidade e interdependência”, afirma Cristinalva Lemos, assistente social do Cendhec.
ESTATUTO DA CIDADE
Neste domingo, 10, é celebrado o Dia do Estatuto da Cidade, que visa a concretização de uma eficaz política urbana. A data relembra a aprovação da Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, criada para melhorar a cidade, que crescia com o avanço da industrialização.
“O Estatuto da Cidade é muito importante, em se tratando da efetivação do Direito à Cidade, porque ele prevê as diretrizes para a política urbana, dentre elas: a participação popular, o parcelamento do espaço urbano, a função social que os imóveis devem ter para que a propriedade seja legítima, a regularização fundiária e a gestão democrática da cidade. Isso implica que todas e todos têm direito a colocar em prática seus projetos de vida nos espaços urbanos, respeitadas suas particularidades e os interesses da coletividade”, explica Luís Emmanuel, advogado e coordenador do Programa Direito à Cidade do Cendhec.
O documento prevê, também, a ocupação do ambiente para aproveitamento de toda a população. Todavia, a paisagem do cotidiano difere do que seria o cenário ideal, como evidencia Luís Emmanuel. “O risco perene de despejos significa que muitos grupos sociais estão em gravíssima vulnerabilidade social e em insegurança de suas vidas, integridade física e de posse, ou seja, o espaço urbano e rural é mal dividido”, estabelece. “A moradia adequada não tem sido direito fundamental efetivo para a maioria da população brasileira. Se a maioria não acessa um direito que é fundamental, implica dizer que quem acessa é, de fato, um privilegiado - quadro que não é condizente com um Estado Democrático de Direito”, declara o advogado.
Consequentemente, é necessário que as cidades estejam em comum acordo com as legislações que tencionam essa proteção. “Desde o Estatuto da Cidade essas garantias foram desenhadas e as diretrizes para a operacionalização deveriam ser implementadas a partir dos Planos Diretores das Cidades. A contribuição da participação social feita em Recife, por exemplo, agregou muito para o desenho das legislações supracitadas a nível nacional, tornando-se exemplo para outras cidades brasileiras. Contudo, o que vemos nos últimos anos é o ataque aos espaços democráticos de participação social, com isso o controle social – a nível federal, estadual e municipal – sofreu (e sofre) muito”, observa Lorena Melo.
O Centro Dom Helder Camara, ciente dessa importância, trabalha para contribuir com essa garantia. “O Cendhec, enquanto centro de defesa de direitos, tem atuado na efetivação do Direito à Cidade e à moradia adequada de grupos socialmente vulnerabilizados, de Comunidades de Interesse Social (CIS) e de moradoras e moradores de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Processos judiciais, processos administrativos e controle social de órgãos públicos responsáveis pela regularização fundiária da cidade são exemplos do que temos feito para fazer valer, na prática, esses direitos fundamentais”, elucida Luís Emmanuel.
NOVOS CAMINHOS PARA MORADIA DIGNA E SEGURA
Na teoria, esse direito está assegurado a todas e todos. Entretanto, como foi explicitado, o dia a dia de quem está nas ocupações é bem diferente. A defesa da vida acontece com o apoio popular de quem luta para, um dia, ter um teto todo seu.
Os dias passam, as gestões públicas assumem cargos, o tema segue sem ser pautado e a pergunta permanece a mesma: será possível, em algum tempo, presenciar moradias asseguradas a todas e todos os brasileiros? As assistentes sociais Lorena Melo e Cristinalva Lemos, e o advogado Luís Emmanuel comentam o que pode ser feito para transformar essa situação.
“A solução é a retomada destes espaços, a ampliação da participação de pessoas comprometidas com as lutas coletivas, assim como de diferentes atores – jovens, mulheres, sobretudo mulheres negras, pessoas com deficiência, entre outras atrizes e atores. Somado a isso, a gestão pública deve ter seu compromisso pautado na defesa da vida e isso significa ações que promovam equidade e justiça social. A luta por moradia também se refere às raízes de uma comunidade e a identidade de uma população”, atesta Lorena.
“As autoridades e gestores do poder público devem cumprir a lei em favor dessas famílias que estão, constantemente, correndo risco de serem despejadas de terras que não cumprem a sua função social, e garantir essa permanência nos espaços coletivos. Eles têm a obrigação de oferecer uma solução habitacional e assegurar moradia digna a sua população”, pontua Cristinalva Lemos.
“Em tempo bem curto, é possível assegurar o direito à moradia adequada a cada brasileira e brasileiro no espaço urbano e rural. Legislação, mecanismos jurídicos de efetivação e uma sociedade civil organizada com experiência e boas ideias já existem, portanto, não partimos do zero total. Os grandes desafios são desbaratar as amarras de um Estado omisso em relação ao modelo de cidade para todas e todos e superar a cultura da acumulação sem função social e da propriedade individual absoluta que, infelizmente, persistem na sociedade brasileira”, sustenta Luís.
Texto: Maria Clara Monteiro - Estagiária de comunicação Cendhec
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