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Onde está Kelly? 20 anos do livro que desvela o trabalho doméstico infantil no Recife


“Sinto saudade de casa, começo a chorar, não tenho o que fazer e vou chorar. [...] Mas eu não tenho nada meu, é tudo da patroa. Esse quarto mesmo, eu fico lá, mas logo tenho que sair para cuidar das coisas.” Este é um trecho do relato de Luzimeire, de 15 anos, e que pode ser encontrado em Onde Está Kelly?, livro publicado pelo Centro Dom Helder Camara de Estudos Sociais com o apoio da Save the Children. Escrito pelo sociólogo, pesquisador e professor Maurício Antunes, a obra que desvela o trabalho de crianças e adolescentes exploradas para serviço doméstico na cidade do Recife completa, em 2022, duas décadas de existência.


O exemplar, que pode ser encontrado para leitura no site do Cendhec, fala sobre um tema ainda bastante invisibilizado. De acordo com dados da World Development Indicators 2015, compilação de estatísticas internacionais do Banco Mundial, levantados em 2015, 2,5% das crianças brasileiras entre 7 e 14 anos trabalhavam, o equivalente a 738,6 mil pessoas. Porém, segundo estudo do pesquisador brasileiro Guilherme Lichand, da Universidade de Zurique (Suíça), e de Sharon Wolf, da Universidade da Pensilvânia (EUA), a quantidade mais realista seria de 19,15%, ou 5,658 milhões de crianças. Os profissionais usaram números agregados pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), que têm como base pesquisas realizadas em diferentes países.


Deste contingente tão imenso, a maior parte, 32%, diz respeito ao Trabalho infantil doméstico. As vítimas são, em sua maioria, meninas entre 14 e 16 anos. Os perfis foram traçados a partir de crianças matriculadas nas escolas, o que, sabemos, não é a realidade de parte do Brasil. Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, do Todos pela Educação, 54% das crianças de 0 a 3 anos dos domicílios mais ricos do país estavam matriculadas em creches em 2019, contra apenas 28% das mais pobres. Durante a pandemia, ainda seguindo o Todos pela Educação, cerca de 244 mil crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos estão fora das escolas. Foi registrado um crescimento de 171,1% na evasão escolar em relação a 2019.


Isso significa que há ainda muito mais Kellys do que se têm notícias, criadas por desigualdades antigas, que se perpetuam na falta de governos preocupados, na ausência de políticas públicas eficazes. Para falar um pouco sobre o cenário em que Onde Está Kelly? foi escrito em 2002, e as repercussões do livro, convidamos o autor, Maurício Antunes. Confira abaixo a entrevista completa:





São 20 anos desde que Onde está Kelly foi publicado. Qual era o contexto do Brasil na época em que foi escrito? O que inspirou a feitura do livro?


O livro nasce de uma pesquisa qualitativa realizada com adolescentes que trabalhavam como empregadas domésticas em casa de terceiros, a maioria meninas, mas também alguns meninos. Muito pouco se sabia sobre a quantidade dessas adolescentes exploradas nos serviços domésticos, dada a condição de invisibilidade que decorre tanto em função das características desse trabalho, que ocorre em residências particulares, praticamente sem fiscalização e longe do olhar de outros adultos, quanto em função da naturalização dessa função, para a nossa sociedade à época, mas também agora, que associa o serviço doméstico à mulher, independentemente da idade, e que não considera essa relação de trabalho como prejudicial para as meninas. Pelo contrário, o emprego de adolescentes pobres em serviços domésticos era, e ainda é considerado uma “ajuda” à menina e à sua família, muitas vezes envolta numa relação de parentesco, ou de compadrio, de modo a não ser caracterizado como uma relação de trabalho, mas como uma relação afetiva onde a família da patroa/patrão acolhe a adolescente para o benefício desta e de seus familiares. Na época havia-se passado 20 anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, e após muitos anos de experiência no combate à exploração do trabalho infantil, o Cendhec iniciava esse projeto pioneiro no país, junto com organizações multilaterais – OIT e Unicef – para desenvolver metodologias de ação envolvendo busca, formação e medidas de apoio para retirar adolescentes das situações de exploração do trabalho.


Quais as suas principais lembranças sobre o processo de escrita/pesquisa e os principais problemas com os quais você se deparou?


A primeira grande dificuldade que tivemos que vencer foi a própria localização de adolescentes em situação de trabalho doméstico e com disponibilidade para participar de um projeto, considerando que, até então, nunca se ouvira falar de exploração do trabalho de adolescentes nos serviços domésticos. “Exploração? Mas, seu eu sair desse trabalho eu vou fazer o quê pra me sustentar e ajudar minha família?” Até mesmo para as adolescentes empregadas domésticas o que estávamos começando a fazer parecia algo muito estranho, incompreensível. A formação do primeiro grupo de adolescentes que participaram da pesquisa qualitativa, que se desdobrou em grupos de discussão e entrevistas individuais, só foi possível através da indicação que cada participante fazia de uma amiga, ou amigo que também trabalhava na “casa dos outros”, ou do conhecimento de algum adolescente que trabalhava em casa ou apartamento na vizinhança. Outro problema que logo tivemos que resolver tem relação com a distância social entre o pesquisador – um homem branco, mais velho, com “cara de patrão” – e as adolescentes que se integravam ao projeto. Isto foi feito trazendo pesquisadoras para participar da pesquisa e do projeto. É importante ressaltar que a experiência foi a maior professora da equipe, considerando que era um projeto pioneiro.


Acha que nessas duas décadas as problemáticas trazidas no Onde está Kelly foram resolvidas?


Resolvidas não, porque há uma complexidade de fatores que incidem sobre a questão da exploração do trabalho infantil nos serviços domésticos, fatores econômicos e socioculturais. Quando se trata de mulheres negras pobres, em nossa sociedade, parece “natural” e necessário que suas filhas e filhos trabalhem desde cedo para ajudar suas famílias. Como a história das sociedades não é linear, nem segue, necessariamente, um sentido de progressividade em sua trajetória de desenvolvimento, podendo mesmo, do ponto de vista dos direitos humanos, sociais, econômicos e culturais, sofrem uma involução, com perda de direitos – como o Brasil vem experimentando desde 2016 – é ilusório pensar que a pauta de combate à exploração do trabalho de adolescentes nos serviços domésticos seja uma pauta superada. Temos que ver que o mercado de trabalho nos serviços domésticos ainda é muito importante para milhares de famílias da classe trabalhadora e, a julgar pelas informações mais recentes, em função da pandemia, muitos postos de trabalho formal, quer dizer, o trabalho doméstico legal com carteira de trabalho registrada, diminuiu sensivelmente. Essa diminuição tanto pode ter se dado em função do empobrecimento geral das classes trabalhadoras e classe média baixa, porque parte dessas são demandantes de empregadas domésticas, quanto pode ser pela precarização do emprego doméstico. Onde há precarização do trabalho prejudicando trabalhadoras adultas, pode-se deduzir que também há exploração do trabalho de adolescentes e crianças.


A precarização das relações de trabalho tem aumentado muito, seja em função da crise econômica, seja em função das políticas neoliberais deste governo, que se traduzem em maior concentração de renda nas mãos das elites e no empobrecimento das classes trabalhadoras.

Se o livro fosse escrito hoje, quais assuntos poderiam ser abordados?


Atualmente são as questões identitárias que emergem com mais força e merecem maior atenção. Não que na época estivessem ausentes, pelo contrário, já era presente a questão de gênero e de idade/geração. No entanto, creio que a questão de raça deve ganhar maior visibilidade no tratamento da questão dos serviços domésticos. Na verdade, a exploração de adolescentes nos serviços domésticos é um tema que exige uma abordagem interseccional, visto que, em sua maioria, encontramos mulheres negras pobres trabalhando nos serviços domésticos. E as mulheres negras, como grupo social com mais desvantagens sociais numa sociedade estruturalmente machista e racista como a nossa, têm mostrado grande capacidade intelectual, política e comunicacional, e hoje o movimento de mulheres negras é o grande protagonista na discussão dessa pauta.


Qual a importância do livro à época e como ele pode ser importante agora?


O livro surgiu na época como uma voz de denúncia embasada em conhecimento. Ainda que falando de um lugar específico, do Recife, o faz com uma firmeza de propósito que foi fundamental para desencadear vários outros projetos, aqui e em outras partes do país, que ajudaram a visibilizar esse grave problema social, revelando o cinismo social existente em torno da ideia de ajudar as famílias pobres, que encobria a exploração dessas jovens. Como livro proveniente de uma pesquisa poderia se supor que hoje estaria totalmente desatualizado, o que é verdade, porém, só em parte, porque o problema social continua vivo e algumas das questões ali colocadas ainda são presentes hoje. De qualquer forma, é preciso avançar e é bom olhar para trás e poder ver de onde partimos e o caminho percorrido até agora, aprendendo com os erros e os acertos cometidos. Nas lutas sociais, a memória é uma das fontes que nos ajuda a avançar. Avançaremos!


Sobre o autor: Mauricio Antunes Tavares é sociólogo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco desde 2007 e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades (Fundaj-UFRPE) desde 2014. Antes atuou como educador popular e pesquisador em organizações não governamentais de 1990 até 2007, em São Paulo e no Recife, incluindo o Cendhec, onde, atualmente, faz parte da Assembleia dos Associados. Coordena a pesquisa “Comunidades Educativas: estudos dos modos de ensinar e aprender o saberfazer” iniciado no segundo semestre de 2021, em parceria entre Fundaj, UFPE e Unicap. É co-autor do livro “Nós para atar e desatar: relações entre educação e cultura”, junto com Rui Mesquita, publicado pela Editora da UFPE (2019).


Leia o livro:



Essa publicação é o resultado de uma pesquisa realizada com 200 crianças e adolescentes trabalhadores domésticos do Recife, com idade entre 10 e 17 anos. O objetivo foi traçar um perfil socioeconômico e cultural desse grupo, revelando inclusive os efeitos desta relação de trabalho sobre o seu desenvolvimento bio - psico-social. (Cadernos Cendhec, 11)



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