O que é preciso para sobreviver - Juventude preta e a relação com o trabalho informal
Raramente o dia começa lento, num compasso pausado, até pegar o ritmo e ganhar a mesma velocidade do trem. Faça chuva ou sol, na maioria das vezes, a rotina é frenética antes mesmo do amanhecer - o trabalho dos ambulantes e de comerciantes informais começa antes de chegar ao local do serviço. Os braços cuja força é indispensável, levam mercadorias mais pesadas do que olhos alheios poderiam imaginar; e as pernas, de caminhadas incansáveis entre vagões do metrô de Recife, revelam um Brasil que deu errado ainda em 1500, e até agora não teve conserto.
Os olhos precisam estar atentos e ouvidos aguçados porque “o comércio informal é proibido dentro do metrô” - conforme aponta o regulamento do Sistema de Transporte Público de Passageiros (STPP). Frequentemente, o grito que anuncia “olha a água, olha a pipoca” é substituído pelo pedido de ajuda quando a mercadoria - fonte de renda - é confiscada pela polícia.
O não-espaço para o cansaço revela camadas obscuras de uma população que conhece o trabalho como sobrevivência antes mesmo da chance de escolha: “eu quero ser jogador/doutor/professor” - ou o que mais desejar.
Esse é um retrato social de lugares e roteiros bem demarcados, e que varia muito pouco quando o local cênico sofre alteração - na rua, nos ônibus, dentro ou fora dos metrôs, nas feiras, em motos ou bicicletas, utilizadas para entrega, os atores sociais e o enredo quase não mudam.
No mês em que se comemora o dia do trabalhador, é fundamental discutir qual a real condição de trabalho dos brasileiros e quais camadas sociais são expostas quando refletimos a respeito. Apesar de muito diverso, o comércio informal tem rostos e peles muito semelhantes. Quais são eles? E por quê? Quais são as condições de trabalho destinada a essa parcela da sociedade no Brasil?
O modo sobrevivência no neoliberalismo brasileiro
No segundo trimestre de 2021, o desemprego atingiu 13,2% de pessoas negras e 9,8%, dos não negros, segundo estudo do Departamento Intersindical de Economia e Estudos Socioeconômicos (Dieese), divulgado em novembro de 2021. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) aponta que até outubro de 2021, a taxa de informalidade chegou a 40,7% da população ocupada.
O número de pessoas que perdeu postos de trabalho por causa da crise sanitária, entre o 1º e o segundo trimestre de 2020, foi de 8,8 milhões. Desses, 71,4% ou 6,3 milhões eram negros. Evidentemente, a população negra foi a mais afetada nesse cenário.
“A gente precisa de dinheiro agora, não amanhã”. O multiartista cabense Fabrício Santos, de 24 anos, também conhecido como Arteiro, vive a realidade do trabalho informal desde os 17 anos. Também estudante de Letras na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Fabrício já fez “de tudo um pouco” como fonte de renda, hoje é guarda vidas e usa as redes pra compartilhar vídeos de humor e poesias. “Desde que eu comecei a trabalhar, eu nunca tive carteira assinada, já fui trabalhar informalmente. Comecei com um lava jato, depois comecei a trabalhar numa pousadinha sendo mensageiro, carregando malas. Já trabalhei em bares e também já fui ambulante, vendi cremosinho, brigadeiro, picolé, amendoim, o que tinha lá eu vendia”, conta.
Jovem da periferia, Arteiro é consciente que o grupo social ao qual está inserido, experiencia obstáculos maiores em relação ao trabalho, em comparação a jovens numa posição social financeiramente mais segura. A urgência à contribuição com os custos em casa ainda é um dos principais motivos para a evasão escolar. “Então é muito mais fácil os jovens se distanciarem do estudo justamente porque vê ali uma possibilidade de arcar com as suas dívidas naquele momento”. Quando ingressou na universidade, sem fonte de renda segura, ele viu sua arte como uma opção para garantir o dinheiro necessário naquele momento. “Eu fazia poemas no busão, aí eu passava o chapéu e ganhava um dinheiro, e eu passei um tempão ganhando dinheiro assim. Até conseguir juntar um dinheirinho pra poder fazer um livro à mão, com meus poemas mesmo”.
Fazer o próprio sustento, definir o horário de trabalho, mediante condições precárias, não é um privilégio, sobretudo para quem não tem outras opções. Para a juventude negra e periférica as alternativas são mais afuniladas e o trabalho sem carteira assinada é apresentado como a alternativa mais coerente com a realidade.
A pandemia da Covid-19 expôs problemas dos quais os brasileiros já eram familiarizados. A alta do desemprego, da inflação e, consequentemente, da fome (e insegurança alimentar), ampliou o caos. Diante das urgências que se intensificaram, o trabalho informal foi a alternativa desesperada de muitas famílias.
Os aplicativos de entrega são um exemplo. Sendo utilizado em sua maioria por jovens, os riscos diários em cima de motos e bicicletas para realizar entregas, são justificadas pela necessidade da renda diária. Um estudo abrangendo 27 países mostrou que Uber, iFood e 99, Get Ninjas, Rappi e Uber Eats não oferecem boas condições de trabalho no Brasil. O estudo “Fairwork Brasil 2021” analisou parâmetros de remuneração, condições, contratos justos, gestão e representação. Numa avaliação de 0 a 10 as notas foram 2, para o iFood e o 99; 1 para o Uber; e 0 para Get Ninjas, Rappi e UberEat.
Os números evidenciam indícios sociais que comunicam nuances das bases históricas do Brasil. Os marcadores são reflexos de aspectos mais complexos do que parecem. É uma herança histórica da normalização da precarização, esta mantida pelo Estado com a ausência de políticas públicas eficazes. A ausência de direitos trabalhistas, a desumanização, e os moldes de trabalho cada vez mais arriscados, em função de um incentivo ilusório à independência financeira, denunciam o descompromisso com os jovens negros e pobres.
Em um país que se orgulha e defende a meritocracia, nem os sacrifícios têm valido a pena. “O ponto negativo do trabalho informal é que você não tem uma segurança, você não tem um contrato, formas de se assegurar no emprego, não importa o tempo que você esteja ou quão bem você faça seu serviço”, conta Fabrício.
Fotos (1 e 3) e texto: Luana Farias/Estagiária de Comunicação do Cendhec
Foto 2: Reprodução/Instagram
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