No Brasil, 27 milhões de pessoas vivem com menos de R$ 246,00 mensais
Desde 1991, a capital pernambucana é a mais desigual do Brasil. Moradoras e moradores mais vulneráveis do Recife lidam com o déficit em saneamento, água potável, coleta de lixo, saúde, educação e transporte.
“Passou sem sentir pela infância. Acostumou-se a pouco pão e muito suor. Na seca comia macambira, bebia os frutos do xiquexique. Passava fome”. Este trecho é do filme O Auto da Compadecida (2000), baseado na peça de Ariano Suassuna. No entanto, poderia facilmente ser de hoje. A realidade do Brasil de pobreza, fome e desigualdade remete a um roteiro de filme de terror que parece não ter fim.
Neste ano, com a diminuição do auxílio emergencial, benefício que foi resultado da mobilização popular dos movimentos sociais e instaurado durante a pandemia do Covid-19, a população abaixo da linha da pobreza aumentou consideravelmente. Em 2019, havia pouco mais de 10% de brasileiros nesta linha. Em 2021, o número foi subindo, e até agosto, segundo dados da Folha de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas Social, quase 13% da população vive na miséria, o que representa mais de 14 milhões de famílias e 27 milhões de pessoas.
Não são apenas números, dados ou estatísticas. Com os impactos da pandemia e os preços exacerbados dos alimentos, do gás de cozinha, da gasolina e da energia elétrica, muitos precisam viver com menos de R$ 246 mensais, em média, R$ 8,20 por dia. Em uma estimativa rápida, é possível perceber que a conta não fecha, derivando à escolha de sacrificar algum lado.
O número de pessoas em situação de rua também cresceu. Não é incomum perceber famílias inteiras desabrigadas que sobrevivem com doações. Muitas perderam o emprego e foram despejadas. Atualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego chega a atingir mais de 14 milhões de brasileiros.
INSEGURANÇA ALIMENTAR
Em uma matéria do El País e com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mais de 19 milhões de pessoas estão passando fome. Numa sensação de diminuir o vazio, as filas nos açougues em busca de ossos de boi aumentaram.
Fragmentos de arroz, muitas vezes usados como ração de animais, se tornam opção para substituir o próprio grão. O feijão quebrado, aquele que quase sempre é jogado fora, passou a ser constante no cardápio.
O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) existe há 32 anos. Até o ano passado, não fazia a distribuição de cestas básicas. Porém, com o aumento da insegurança alimentar, unida às crises sociais, financeiras e sanitárias, foi necessário oferecer essa ajuda humanitária.
“O Cendhec se mobilizou para conseguir doações. Garantimos, com isso, a distribuição das cestas básicas, kits de higiene e limpeza e EPIs para as famílias mais empobrecidas e afetadas pela pandemia de covid 19. Todo o material coletado foi distribuído em 7 comunidades onde atuamos", explica Ana Cláudia, coordenadora administrativa do centro. "Neste ano, 2021, não foi diferente. Continuamos as distribuições, desta vez acrescentando absorventes no kit de higiene, preocupadas e preocupados com a dignidade menstrual de meninas e jovens mulheres. Montamos, também, kits pedagógicos, incluindo lápis, borracha, cadernos, pastas e fones de ouvido, para auxiliar crianças e adolescentes nas suas aulas online ou oficinas ministradas pelo centro."
“Nas comunidades e com as organizações sociais com quem a gente trabalha, víamos a situação da população, com muita fome e miséria. A ajuda humanitária também é uma forma de prevenção à violência contra crianças e adolescentes. Nessa entrega, também houve distribuição de materiais informativos e orientações sobre enfrentamento e prevenção da violência doméstica e sexual”, aponta Katia Pintor, coordenadora do Programa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Cendhec.
Os retratos da fome vão voltando a ser notícias nacionais. Para o país que havia deixado o Mapa da Fome da ONU, em 2014, essa realidade parece ser uma distopia. O valor da cesta básica subiu quase 17%, e os valores dos programas de políticas públicas permanecem congelados. Hoje, o auxílio compra apenas 38% dos alimentos primordiais. Como resultado, “fome para João Grilo”, como se queixa o personagem de O Auto da Compadecida.
DESIGUALDADE SOCIAL
“A maior justiça é feita pela consciência”, relata o romance Os miseráveis de Victor Hugo, publicado originalmente em 1862. Por meio do personagem Jean Valjean, tem-se acesso à situação política, social e econômica da França, no século XIX. Ele descreve a situação cotidiana das pessoas que são submetidas à exploração da miséria e do trabalho. Alguma semelhança com 2021?
Dois séculos depois, a situação narrada permanece mais atual do que nunca. A falta dessa consciência assola o país, e como consequência, a desigualdade social dispara. Segundo informações da Agência Brasil, o Índice de Gini, indicador responsável por essa medida, registrou valores absurdos. A escala funciona com base em que quanto maior a nota, maior a desigualdade. Na pandemia, o número do Brasil saltou para 0,640. Em compensação, na década passada, era de 82,2.
No auge da pandemia e com todas as dificuldades sociais enfrentadas, é anunciado o surgimento de 42 novos bilionários brasileiros. Entretanto, não foram gerados empregos e a pobreza não para de aumentar. Com isso, vale o questionamento do que fazer para superar essa situação que parece ser infindável, e proporcionar a retomada da dignidade dos habitantes brasileiros.
RECIFE: A CAPITAL MAIS DESIGUAL DO PAÍS
Dentro do Recife, é perceptível a existência de diversas cidades. Todas contrastando entre si. Desde 1991, a capital pernambucana é a mais desigual do Brasil.
Um estudo realizado pelo IBGE, em 2019, revelou que mesmo com o título emergente da desigualdade, Pernambuco era o terceiro estado do país com maior afluência de renda.
Com essa concentração de poder, os moradores mais vulneráveis do Recife lidam com o déficit dos serviços básicos de uma sociedade, que incluem saneamento, acesso à água potável, coleta de lixo de forma adequada, saúde, educação e transporte.
Durante a pandemia, essa desigualdade foi acentuada, e atingiu fortemente a população mais pobre. O sentimento de insegurança alimentar, ameaças de desocupação, incertezas e falta de infraestrutura pública foram constantes.
É possível observar imensos prédios de um lado, e de outro, moradias precárias. A discrepância é bem próxima. E com essas supressões, a ausência da atuação dos programas de proteção social é evidenciada.
Em 2019, o estado abrigava 1,2 milhão de pessoas, 13% da população, em situação de miséria, com renda mensal domiciliar per capita inferior a R$ 151 (US$ 1,9 por dia). De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais 2020 (SIS), cerca de 115 mil pessoas, ou 7% da população da capital pernambucana, vivem abaixo da linha de extrema pobreza.
Estima-se que quatro em cada dez pernambucanos vive com menos de R$ 436 reais por mês. Segundo o levantamento, 9% dos pernambucanos com renda mensal inferior a US$ 1,90 por dia e não contam com nenhum tipo de programa de proteção social. Pelo menos 28,6% apresentam condições de moradia precárias, 38,8% têm dificuldade no acesso à educação, 47,1% não possui acesso a Internet e 66,5% vivem em domicílios sem saneamento.
Pessoas pretas e pardas são as mais vulnerabilizadas. Entre os 10% da população com menores rendimentos, três quartos (75,4%), encaixam-se neste recorte. Já os 10% com maiores rendimentos (56,5%) são brancos e brancas.
O QUE ESPERAR DO FUTURO?
17 de outubro foi o dia escolhido para celebrar o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. A data tem a intenção de conscientizar e dar visibilidade à causa.
Como aparente, milhões de pessoas ainda vivem expostas à fome, à desigualdade e à miséria. Por isso, é necessário cobrar recursos dos representantes políticos, para mudar esta triste realidade.
Como bem disse o personagem Eurico de O Auto da Compadecida, “ajuda e dinheiro são duas coisas que não se ‘enjeitam’”. Dessa forma, almeja-se, para além desta data, que o debate sobre este tema seja incisivo.
A geração de emprego que promove dignidade para as famílias é imprescindível neste contexto. Com o desejo de mudança, o poeta William Shakespeare disse que "os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança”. O desafio, aqui, é ir adiante: pensar nos Miseráveis de hoje e construir o caminho para a transformação.
Texto: Maria Clara Monteiro / Estagiária de comunicação do Cendhec Arte: Karla Linck
Fontes:
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