Mulheres estão sempre em guerra
O áudio de Arthur do Val (Ex-PODEMOS e ex-MBL) expõe o desrespeito ao gênero feminino em todo o mundo
No início deste mês de março - popularmente conhecido como Mês das Mulheres -, um áudio vazado, com falas misóginas, repercutiu e provocou revolta. De autoria do deputado Arthur do Val (ex-PODEMOS), o trecho, que circulou pelo Whatsapp, reafirma o desrespeito no qual o gênero é tratado, mesmo em situações que deveriam despertar compaixão.
O ex-integrante do MBL, em visita a Ucrânia – país que atualmente trava um embate com a Rússia -, faz menção às mulheres refugiada quando diz: “São fáceis, porque elas são pobres. E aqui minha carta do Instagram, cheia de inscritos, funciona demais. Não peguei ninguém, mas eu colei em duas ‘minas’, em dois grupos de ‘mina’. É inacreditável a facilidade. Essas 'minas' em São Paulo você dá bom dia e ela ia cuspir na sua cara e aqui são super simpáticas".
Estas frases, que caem como mais uma violência sobre pessoas já castigadas pela guerra e a fome, nos fazem pensar como crimes sexuais e referências aos mesmos são naturalizadas. No discurso do deputado, as camadas de violências estão explícitas. Percebesse a incitação ao turismo sexual, por exemplo, quando após objetificar e sexualizar as emigrantes ucranianas, ele completa: “Assim que essa guerra passar eu vou voltar pra cá”. Arthur pode encarar cassação do seu mandato.
São situações chocantes. São afirmações que causam nojo, mas que ecoam também em nosso país, que afetam também nossas mulheres e meninas. Aquelas em que, em sua maioria, não têm cabelos loiros ou olhos azuis, que não possuem “traços europeus” e nem a empatia da mídia, mas compartilham do desprezo, misoginia e comercialização dos seus corpos.
As palavras daquele que deveria representar o povo lança luz às mazelas vividas pelo feminino. Estima-se que existam cerca de 40 milhões de vítimas de escravidão moderna e dois terços desse número são de meninas e mulheres. Segundo dados divulgados pelo último Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mulheres e meninas são 65% das vítimas do tráfico de pessoas. A intenção de exploração sexual, que envolve em 92% das situações, vítimas femininas, representa 50% dos casos totais de tráfico.
A ex-Presidente do Movimento contra o Tráfico de Pessoas (MCTP), Débora Aranha, que atualmente é gerente do programa Freedom Fund no Brasil, analisa o conteúdo do áudio como um pensamento típico de um abusador. Para ela, Do Val reafirma a noção de superioridade diante de mulheres. Aduba uma crença, irreal e distorcida, mas que é posta em prática, de posse sobre corpos femininos; e, ainda, a confissão de que pessoas vulneráveis são mais fáceis de persuadir, logo, propensas à exploração.
Ativista dos direitos humanos, Débora pontua que “é justamente esse tipo de pensamento que faz com que esse crime se perpetue na sociedade, é a fala típica de um abusador, que são esses tipos de normas sociais que a gente precisa combater pra que as estruturas do patriarcado, que estão por trás dessa objetificação do corpo da mulher, possam ser derrubadas. Sem derrubar essas estruturas a gente não vai conseguir realmente avançar”.
Quem é o alvo mais comum de crimes sexuais no Brasil?
As vítimas têm perfil, gênero, cor, classe social e escolaridade bem definidas. São frutos de um país que foi taxado, por exploradores, como terra nova, de beleza natural comparada ao paraíso e sem donos. O orgulho colonial, a desumanização daquelas e daqueles que já moravam neste solo e o “salvamento” que tentam nos convencer, mesmo quando, na realidade, o que ocorre é a invasão e degradação, moldou olhares ao longo do tempo.
A terra foi violada. Povos originários também. Historicamente, mulheres negras e indígenas ocupam espaços marginalizados nas sociedades ocidentais, inclusive no Brasil pós-escravidão. Seus corpos, objetificados, foram expostos a inseguranças e ausência de aparatos que lhes garantissem proteção - uma vez que não era do interesse do Estado, e, apesar das movimentações e articulações sociais, ainda não é. Aranha destaca a ausência de órgãos do Estado, como um dos aspectos que contribuem para a manutenção de violações.
Aranha analisa esses recortes sociais e de raça e observa que inclusive as oportunidades de melhoria e qualidade de vida, são limitadas. “Tem a questão da pobreza como sendo uma das raízes, uma das causas principais do tráfico sexual de mulheres e de meninas, mas a gente tem no patriarcado, a objetificação do corpo da mulher e as discriminações como um todo. A gente vai ver que as oportunidades são retiradas em diversos níveis dessa mulher, a oportunidade de trabalho digno, principalmente”. Além disso, segundo análise realizada pela Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), há maior incidência de tráfico sexual entre jovens de 18 a 30 anos.
Órgãos de denúncia e subnotificação
Manuela Soler, advogada do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social destaca que "um dos efeitos da pandemia foi a diminuição das denúncias de violências sexuais. Os números do Disque 100 caíram em 2020, dando lugar à subnotificação. Considerando que a maior parte destes crimes contra crianças e adolescentes acontecem dentro de casa, o isolamento social acarreta mais vulnerabilidade à exposição desses casos".
Nesse sentido, Soler comenta que dentre as problemáticas da naturalização de estruturas de poder misóginas está "o silenciamento diante de casos de abusos e exploração sexuais. Que ganham força, muitas vezes, a partir de outra violência ainda comum no âmbito familiar: a violência doméstica contra a mulher”.
Não raro, relatos de guerra - e miséria - expõem camadas tão reais quanto cruéis de serem encaradas. A guerra contra a fome - presente tanto nas disputas bélicas de interesses econômicos entre países, quanto em cenários já degradados pelo abandono do Estado - é um dos principais fatores que propiciam ações extremas de famílias inteiras em busca de sobrevivência. Logo, apesar de não ser uma novidade, a negociação de meninas e mulheres destinadas ao trabalho escravo - em maioria sexual -, em troca da promessa de cessar ou amenizar a miséria de sua família, é um fato que aterroriza. O endividamento tira a liberdade já ameaçada e o medo, sentimento de manutenção do poder de exploradores em relação às vítimas, é intensificado.
O problema da subnotificação é mediado por fatores como a dificuldade em identificar uma violação sexual, o desconhecimento de órgãos de denúncia, a insegurança na efetivação da punição dos agressores, como também, a normalização de ações violentas sobre os corpos femininos. Aranha reforça que é necessário “Trabalhar nessas duas frentes: tanto no conhecimento dos canais, como na mudança da aceitação dos abusos e da exploração como práticas normais na nossa sociedade”.
Lançado na segunda semana deste mês, pelo Freedom Fund, o relatório “Desigualdade de gênero e escravidão moderna - Como quebrar o ciclo de exploração de mulheres e meninas”, disponibilizado em inglês, apresenta oito passos rumo ao combate à exploração e tráfico sexuais do gênero feminino. O destaque na necessidade de uma rede de apoio segura, é notável para a mudança, desse modo, são medidas propostas pelo documento, garantir o apoio ao trabalho decente; à migração mais segura; a iniciativas que abordam questões de violência e abuso sexuais; ao acesso justo e igualitário à educação; a iniciativas que desafiam normas e atitudes de gênero; à liderança das mulheres – incluindo liderança dos sobreviventes; a grupos de mulheres – como auto-ajuda, poupança e empréstimos e grupos de trabalhadores; e, por fim, a iniciativas nacionais e globais que visam a melhoria de leis e regulamentos.
Mais sobre a Freedom Fund
A Freedom Fund é uma organização não governamental que atua globalmente no combate à escravidão de mulheres, com o objetivo de transformar as estruturas e engrenagens de tráficos de pessoas. No Brasil, a instituição busca erradicar a exploração sexual de crianças e adolescentes na Região Metropolitana do Recife, trabalhando com organizações da sociedade civil, que estão na linha de frente. A Freedom Fund investe, também, em estudos e pesquisas dos temas abordados.
O Cendhec e a luta contra o tráfico e exploração sexual
Apoiado pela Freedom Fund, o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social trabalha para identificar e mitigar os efeitos dos crimes sexuais contra meninas e mulheres.
O quadro de funcionárias e funcionários do Cendhec, formado por uma equipe multidisciplinar, promove atendimento, oficinas, palestras e debates sobre estas pautas com crianças, adolescentes e famílias nas comunidades nas quais o Centro têm atuação
No final de 2021, por exemplo, no Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças, a ONG distribuiu kits de higiene, fones de ouvido, kits pedagógicos e cestas básicas para famílias de adolescentes que estão expostos ao risco de abuso e exploração sexual. A ação contou com apoio financeiro das organizações internacionais Freedom Fund e Kindernothilfe.
Texto: Luana Farias/Cendhec
Arte: Alcione Ferreira/Cendhec
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