Dom Helder: ativismo e revoluções
A defesa dos Direitos Humanos marcou a atuação de Dom Helder Câmara, que nasceu há 113 anos e dedicou sua atuação à luta pela igualdade social
Quando proferiu o seu primeiro discurso em praça pública, feito inédito no histórico de posses dos arcebispos da Arquidiocese do Recife/Olinda, Dom Helder anunciou: “Minha porta e meu coração estarão abertos a todos”. Ali, o líder religioso, que nasceu no dia 07 de fevereiro de 1909, assinalou para centenas de fiéis que lotaram a Praça do Diario, no Centro do Recife, que não se espantassem ao vê-lo ao lado de criaturas rejeitadas pela sociedade. Assumindo a postura humanista que marcou sua trajetória, Dom Helder, em um movimento oposto ao que ocorre no atual contexto da política brasileira, usou o exemplo de Cristo para lutar contra os desmandos de opressores, a favor da justiça e igualdade.
A partir daquele abril de 1964, ano que também marcou o início da Ditadura Militar no país, o bispo iniciava um novo capítulo de uma história que lhe renderia o título de patrono dos Direitos Humanos de Pernambuco. “A solenidade de posse dos arcebispos sempre foi fechada só para autoridades, militares e civis. Dom Helder escolheu dizer ao povo que estava assumindo o cargo e ele disse que ninguém se escandalizesse ao vê-lo recebendo homens de direita ou de esquerda. Não escondeu que sua pastoral seria uma pastoral, preferencialmente, para os pobres”, recorda Edval Nunes Cajá, sociólogo, ex-preso político e coordenador do Comitê Memória, Verdade e Justiça para a Democracia.
Cajá e o Dom da Paz
A consciência social do líder religioso sublinhou toda a sua atuação política. Nascido em Fortaleza, no Ceará, Dom Helder teve uma origem humilde. Filho do jornalista e bibliotecário João Eduardo Torres Câmara Filho, e da professora primária, Adelaide Pessoa Câmara, foi o décimo primeiro dos 13 filhos do casal. A vocação para o sacerdócio manifestou-se logo cedo, aos quatro anos de idade. Aos 14, já fazia parte do Seminário da Prainha de São José, na sua cidade natal, onde também cursou Filosofia e Teologia. Foram os primeiros passos de um caminho traçado pela fé. Aos 22, depois de ordenado sacerdote, com a autorização da Santa Sé, em 15 de agosto de 1931, celebrou a sua primeira missa.
Desde o início de sua trajetória como liderança, ao contrário de muitos religiosos de sua época, Dom Helder, que foi nomeado bispo em abril de 1952, ainda aos 43 anos, lançou seu olhar para fora das paredes de concreto da igreja e em prol dos menos afortunados. “Muitos cristãos dizem que Jesus e a igreja não têm lado. Dom Helder fazia questão de dizer que os cristãos precisam ter a coragem de afirmar que o lado deles é o lado dos desvalidos, necessitados, explorados e oprimidos”, pontua Cajá, que conviveu de perto com o bispo, descrito por ele como um homem leve e bem humorado. “Ele destencionava qualquer reunião muito tensa com suas anedotas”, conta, e acrescenta: “Trabalhar com Dom Helder foi uma das coisas mais gratificantes. Era um homem bem humorado, culto, inteligente, de raciocínio rápido, humanista e não hipócrita”.
A história de vida de Cajá é atravessada pela generosidade e ativismo de Dom Helder, que ocupou o posto máximo da Igreja Católica em Pernambuco entre 1964 e 1985, anos marcados pela Ditadura Militar. Preso político entre 1978 e 1979, ele conta que sem a ajuda do religioso “não estaria vivo”. “Conheci Dom Helder na terceira semana de agosto de 1973, quando fui pedir para interceder no sentido de salvar a vida de três jovens opositores ao regime, entre eles Manoel Lisboa de Moura, ex-estudante de medicina, que foi sequestrado no dia 16 de agosto de 1973”, rememora ele, que atualmente é presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa.
Cajá iniciou sua militância no interior paraibano, na Região de Cajazeiras, onde nasceu. O apelido que adotou para vida foi uma “invenção” de Dom Helder de quem precisou quando foi sequestrado pelo Regime em 12 de maio de 1978, durante o Governo Geisel. O arcebispo não exitou em usar toda sua influência para proteger a vida de Cajá e acionou a Polícia Federal, Exército e Marinha em busca de informações sobre o amigo. Até a intervenção do Papa Paulo VI foi requerida por Dom Helder para manter Cajá seguro. “Se não fosse ele, eu estaria na lista dos desaparecidos. No dia do meu julgamento, ele estava presente na sala de audiência junto com meu advogado e meus familiares”.
Ao lado de nomes como Dom Paulo Evaristo, Dom Helder entendeu que era dever do evangelho defender quem estava sendo perseguido, preso e morto por meio da defesa dos Direitos Humanos. “A parte reacionária da Igreja Católica dizia que ele estava se metendo em política, não à toa sua casa foi metralhada em 1969. Mas ele era um homem desassombrado e não se intimidou. Muitos se salvaram da Ditadura por causa da ajuda de Dom Helder”, conta Cajá.
Para o ativista, Dom Helder ajudou o Brasil a transitar da Ditadura para a democracia e foi o bispo com maior projeção nacional, o que incomodou as autoridades de uma época marcada pela perseguição política. “Isso se deve a sua pregação coerente e desassombrada, o que levou ele a se projetar internacionalmente. Uma denúncia que ele fazia repercutia no mundo inteiro. Ele foi candidato mais de uma vez ao prêmio Nobel da Paz e a Ditadura organizou até abaixo assinado para ele não ganhar”. Apelidado de bispo vermelho, em alusão ao Comunismo, tão combatido na época do Regime, Dom Helder chegou a entrar na lista de nomes que não poderiam ser citados pela grande mídia. Mas não retrocedeu e usou a imprensa internacional para denunciar as atrocidades cometidas pela Ditadura Militar.
Ativismo na prática
A atuação religiosa de Dom Helder nunca esteve separada de seu ativismo político. Como liderança, acreditou que era importante difundir a tolerância e lutar por uma sociedade mais igualitária. “A tolerância era uma palavra comum no dia a dia dele. Era um homem que discutia o ecumenismo, que tinha grande respeito pelas diferenças e muita capacidade de dialogar. Era amigo de gente de Esquerda e Direita e tinha uma ligação muito forte com a política”, avalia o jornalista e pesquisador Jailson da Paz, que atualmente integra a Comissão de Justiça e Paz (CJP), instaurada em Pernambuco por Dom Helder na década de 60 e resgatada pelo arcebispo metropolitano, Dom Fernando Saburido, em 2017.
A CJP, atualmente presidida por Malu Aléssio, nasceu com o objetivo de promover os Direitos Humanos à luz da doutrina social da Igreja e em defesa dos perseguidos políticos, Direito à terra no âmbito urbano e rural, contra violência policial. “A comissão reaviva a memória de Dom Helder Câmara, que é um dos grandes nomes em defesa dos Direitos Humanos”, avalia Jailson da Paz. Cajá foi membro da primeira versão da Comissão e viu muitas pessoas serem beneficiadas pela sua atuação. “Ela nasceu para dar ‘a voz aqueles que não tinham voz’ e promoveu assistência jurídica para ocupantes de terras e presos políticos. Dom Helder era um cristão verdadeiro e coerente com a vida do fundador da Igreja e procurou se esforçar para imitar Jesus Cristo”, pontua.
Numa época em que os grandes latifundiários dominavam a região Nordeste, Dom Helder defendeu a Reforma Agrária. Com o dinheiro que recebeu como premiação pelo Prêmio Popular da Paz comprou terrenos na Zona da Mata Sul e fez um loteamento para sem terras plantar lavoura de subsistência. Além disso, contratou um técnico agrícola para orientar as famílias numa estratégia de coibir o trabalho escravo promovido pela cultura canavieira. “Ele queria mostrar que era possível a Reforma Agrária”.
“Não vim para ser servido. Eu vim para servir.”
“Dom Helder queria que as pessoas tivessem mais consciência social. Ele sonhava com um Brasil mais digno, mais fraterno, solidário e justo”. A declaração é de Padre Geovane Saraiva, grande admirador e seguidor dos ensinamentos do Dom Helder Câmara. Com 33 anos de batina, o religioso está à frente da Paróquia de Santo Afonso, em Fortaleza, há 18 anos e tem o bispo como grande referência para sua atuação. Inspirado pelo trabalho dele, Padre Rodrigo tem se esforçado para também colocar em prática suas lições apoiando projetos como o “Dom Helder: arte e missão”, que, desde 2014, promove qualificação profissional para jovens.
Como admirador do bispo, Padre Geovane, em 2009, fez questão de organizar, ao lado dos fiéis da igreja, uma grande festividade em homenagem ao centenário de Dom Helder. Para ele, “a vida do Dom Helder é como uma mina de ouro que precisa ser sempre e cada vez mais explorada”. “Dom Helder, pequeno na estatura, mas grande nos sonhos, nos ideais e na santidade, colocou sua vida nas mãos do Pai, com a firme convicção e com aquela confiança inabalável, que a pessoa humana é o que existe mais sagrado na face da terra”, escreveu o religioso em ocasião dos 103 de nascimento de Dom Helder.
Em suas missas, o pároco costuma citar os ensinamentos do arcebispo e chegou a coordenar a edição de um livro intitulado “Rezar com Dom Helder” que reúne pensamentos, poemas, orações e fotografias do bispo. “Ele nos ensinou que a única guerra legítima é aquela que se faz contra o subdesenvolvimento e a miséria”, pontua Padre Geovane.
Para quem conviveu de muito perto com Dom Helder a impressão é a mesma. Cajá, que trabalhou com o bispo entre 1974 e 1981, quando ele presidiu a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, comenta sobre sua conduta.
“É mais do que justo Dom Helder ser considerado patrono dos Direitos Humanos porque desde o início até sua aposentadoria atuou de forma coerente, linear. Fez uma gestão afirmando a teologia da libertação”.
Dom Helder nunca se desanimou diante das agressões e violências dos momentos mais difíceis, como em 1973, quando a Ditadura matou mais pessoas. Em um cenário político como o Brasil de hoje em que a religiosidade tem sido usada em prol de interesses escusos, Cajá acredita que ele “nadaria de braçada junto com os pobres na luta pelo restabelecimento da democracia e, portanto, pelo Fora Bolsonaro”.
Texto: Lenne Ferreira / Cendhec
Arte: Alcione Ferreira / Cendhec
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