Avanço do genocídio negro, jovem e periférico: adolescências interrompidas pelas mãos do Estado
“Victor Kawan foi baleado de forma truculenta, preconceituosa e racista, porque é mais um adolescente negro, morador da periferia, de um bairro periférico com suas desigualdades”. A fala é de Betinho Silva, comunicador, ativista pelos direitos humanos e integrante do Comitê Pernambuco da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Nesta semana, o Recife atingiu uma triste marca: 100 adolescentes foram vítimas fatais da violência policial, antes mesmo do ano se encerrar. O número já supera o de 2020, que teve 93 vidas interrompidas de forma letal.
No levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado, tem-se a média de que, na capital pernambucana, um adolescente foi baleado a cada três dias. Em novembro de 2021, foram nove vítimas e 158 disparos de arma de fogo foram feitos; neste mesmo período, em 2020, apenas um adolescente foi atingido e houve 134 disparos, representando um lamentável aumento de 18%.
Os dados revelam, ainda, que os 1.575 tiroteios na RMR atingiram 1.717 pessoas. Destas, 1.156 morreram e 561 ficaram feridas. O Recife lidera vergonhosamente o mapa da violência com 62 disparos, 43 mortos e 31 feridos. Os bairros mais afetados são Ibura, com 6 tiroteios, 3 mortos e 5 feridos; Jardim São Paulo, com 6 tiroteios, 2 mortos e 6 feridos e Várzea, 4 tiroteios, 2 mortos e 1 ferido.
SÍTIO DOS PINTOS: BAIRRO DE VICTOR KAWAN
De acordo com o último censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, o bairro tinha mais de 7.000 mil habitantes e diversas comunidades. Betinho também mora no Sítio dos Pintos e relata como é o dia a dia na comunidade. "É uma faca de dois gumes, porque tem as desigualdades, mas, também, tem as soluções. Tem coisas boas: Igrejas, escolas, transporte coletivo. Mas ainda temos problemas estruturais. A gente não tem arranha-céus no entorno, mas temos os empreendimentos. Os condomínios ricos ao lado da nossa comunidade”, disse.
No último dia 11, Victor Kawan, de 17 anos, morreu baleado no bairro em que morava, no Sítio dos Pintos, zona norte do Recife. O jovem foi vítima de uma abordagem policial violenta, e foi tristemente empurrado a ocupar a centésima posição das pessoas atingidas pelo projeto de necropolítica e genocídio da população negra periférica no grande Recife.
O comunicador conhecia Victor desde criança e conta como era a personalidade do adolescente: “Era uma pessoa atuante, tinha sua inteligência produtiva, criativa. Já fazia o desenvolvimento do trabalho, em um lava jato, numa hamburgueria. Nos bicos que fazem aqui já na comunidade, na vizinhança. Era uma pessoa pacata, muito alegre, contagiante. Inclusive, era conhecido pelo sorriso, pelo jeito cordial. Victor era um adolescente em uma perspectiva de crescimento. E fazia de tudo para poder evoluir nos ‘bicos’, nos ‘trampos’, nos ‘corres’. O impacto da morte dele para a comunidade é de que não pode acontecer mais com os outros. Não dá mais para a gente aceitar perder as pessoas. Nós precisamos ter possibilidades para esses adolescentes. E Victor precisava de possibilidades, de portas abertas. Na verdade, o próprio Estado deu essa condição de ponto final, de fechar as portas, de não ter mais futuro, nem perspectiva nenhuma para o Victor”, expõe Betinho.
Os corpos negros que as balas de armas de fogo encontram têm similaridades. Victor era magro e alto, gostava de dançar, andar de bicicleta e iria ingressar o último ano do ensino médio. Como relembra Emicida, existe “pele alva e pele alvo e quem disparou usava farda”.
Eliel Silva faz parte do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop) e coordena projetos que prestam assistência para pessoas vítimas de racismo, e elucida reflexões importantes. “A abordagem policial se dá de forma diferenciada a partir dos bairros, aqui na região metropolitana. É pedagógico a gente sempre fazer questionamentos, por exemplo, será que a polícia faz a mesma abordagem no Sítio dos Pintos como ela faz em Boa Viagem, no Espinheiro?”
Mais do que um número, Victor estava envolvido na construção social da sua comunidade. O afeto e relação de proximidade entre os moradores trouxe atos de lutas e resistências em sua memória. Estão sendo realizadas homenagens e movimentos em memória de Victor. Na terça, celulares foram acesos em frente a casa onde o adolescente morava. Na quinta, foi feito um mutirão de limpeza para a criação de um mural que relembre o jovem.
Para mais informações sobre os atos é só acessar o Instagram do bairro: @avozdospintos. Em busca de mobilização e visibilidade, a #JustiçaPorVictorKawan também está circulando.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura que nenhuma criança ou adolescente será vítima de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No entanto, Victor não pôde crescer e realizar seus sonhos, e deixou uma vida inteira de possibilidades.
RACISMO ESTRUTURAL
O relatório PELE-ALVO: A COR DA VIOLÊNCIA POLICIAL, elaborado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, CESeC, revela a violência letal da polícia contra a juventude negra.
O estudo mostra que, no Recife, todas as pessoas mortas pela polícia eram negras, e no estado, o número subiu para 52,7%, ficando atrás apenas do Ceará e da Bahia, comparando com a região Nordeste.
O racismo estrutural deixa marcas profundas. O olhar diferenciado, o afastamento, o julgamento. A construção midiática incide, ainda, para a normalização e banalização desses comportamentos. Dessa forma, a violência é tida como corriqueira, e atitudes racistas são passíveis perante o contexto social. Todas essas situações vivenciadas pelas pessoas negras refletem a negligência da falta de políticas públicas. “Se o caso do Kawan fosse na Torre, em Boa Viagem, em Casa Forte ou no Espinheiro, a situação seria outra. Teria um desdobramento totalmente diferente desde a notícia até a cobertura. O sistema é o opressor. O racismo estrutural começa a partir de tudo isso, quando nem se conhece o sujeito e se faz uma avaliação, porque é o avaliar corporal das pessoas”, reflete Betinho.
Apesar dos apontamentos, a perspectiva é de que no inquérito policial não conste que foi injúria racial ou racismo. “Mas que essa violência, a abordagem, o homicídio decorrem a partir desse lugar do racismo. Não necessariamente vai se utilizar esse nome, mas isso não quer dizer que a gente não possa falar que foi uma atitude racista, por exemplo”, destaca Eliel.
Para mudar essa conjuntura são necessárias ações governamentais de conscientização, humanização e sensibilidade que transformem, de fato, a vida da comunidade. “O direito à educação precisa ser garantido, o acesso e a permanência na escola, o emprego, o saneamento básico estrutural, a saúde. Temos que ter gestão pública pactuadas com a comunidade, com a cidade. As políticas públicas precisam ser para a gente, para as pessoas, para as comunidades. Além do uso midiático para conscientizar, refletir”, afirma Betinho, evidenciando a necessidade da garantia dos direitos fundamentais.
Texto: Maria Clara Monteiro/Cendhec
Arte: Alcione Ferreira/Cendhec
Confira a nota de repúdio à violência praticada pela PM/PE assinada pelo Cendhec, Centro de Cultura Luiz Freire, Centro das Mulheres do Cabo, Comitê PE da Campanha nacional pelo Direito à Educação, a Mandata da Juntas Co-deputadas Gajop e Rede de Mulheres Negras de Pernambuco na íntegra:
No dia 11 de dezembro de 2021, segundo o relatório do Instituto Fogo Cruzado, o 100º adolescente residente no Grande Recife foi baleado por arma de fogo. Victor Kawan Souza da Silva, 17 anos, teve sua vida interrompida após uma abordagem policial na comunidade onde morava, em Sítio dos Pintos. Na garupa da moto de um amigo, Victor foi mais uma vítima da violência policial que tem endereço e corpos certos. Ele entrou na estatística que revela uma média assustadora: um adolescente é baleado a cada três dias no Recife e Região Metropolitana.
Tomar conhecimento da morte de Victor leva a nossa imaginação a visualizar os diversos futuros que ele poderia ter tido se não fosse o descumprimento de direitos fundamentais, a negligência do Estado e as violações perpetradas pelas nossas instituições de poder. Victor estava prestes a cursar o terceiro ano do ensino médio, mas foi retirado abruptamente do seu ciclo de vida e não vai realizar seus sonhos para a fase adulta. Segundo sua família, sempre foi muito querido pelos(as) moradores (as) da comunidade e, como é comum na adolescência, adorava dançar e passear de bicicleta pelo bairro. Cheio de solidariedade para oferecer, era um garoto carinhoso, divertido e trabalhador.
É sempre válido lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) existe para garantir uma vida digna e segura para adolescentes como Victor. Qual tem sido o papel do Estado para que o ECA seja cumprido na prática? O Artigo 5º do Estatuto assegura que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Quando olhamos para os dados sobre a segurança pública percebemos o quanto falhamos em cuidar das nossas crianças e jovens.
O Centro de Cultura Luiz Freire, o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), o Comitê Pernambuco pelo Direito à Educação (CNDE/PE),o Centro das Mulheres do Cabo (CMC), o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Mandata das Juntas Co-deputadas (PSOL-PE), manifestam, por meio desta nota, sua indignação, tristeza e seu repúdio pelas ações homicidas praticadas pela Polícia Militar de Pernambuco (PM-PE), que vem vitimando a população negra, em particular a juventude periférica. A política de extermínio enraizada na corporação e endossada pelos líderes de governo precisa ser interrompida e não pode seguir impune. De acordo com os dados da Rede de Observatórios de Segurança, que foram divulgados esta semana pela Marco Zero Conteúdo, no Recife, todas as pessoas assassinadas pela polícia entre 2019 e 2020 eram negras.
Cobramos uma resposta das autoridades públicas, bem como uma investigação e responsabilização dos culpados e de todo e qualquer agente policial que faz uso da farda para promover a perseguição e violência contra jovens negros e periféricos. Exigimos justiça por Victor Kawan e todos(as) adolescentes que foram tirados(as) de suas famílias e amigos pelo braço armado do Estado que segue promovendo o genocídio da população mais vulnerável.
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