Arte preta e ‘(cor)resistência’
Na última sexta-feira, 03, as cantoras Bione e Gabi do Carmo participaram do show “Coisa de Preta” da cantora Isaar. O show, realizado no Terra Café Bar, na Boa Vista, deu continuidade às atividades do mês da Consciência Negra.
Consciência, segundo o dicionário, está ligado a termos como ‘eu’, ‘existência’, ‘pessoa’, “revelando uma conexão existente entre consciência e a consciência moral”. Mas além disso, diz respeito a “Compreensão ou interesse sobre certo ponto de vista, geralmente, refere-se ao contexto social e político”.
A Consciência Negra está além de refletir e debater as estruturas racistas em um único mês do ano, uma vez que a demarcação é um motivo relevante para relembrar e debater lutas diárias. A consciência coletiva do povo negro vem de um processo - longo, contínuo e imparável - não apenas de luta contra o racismo e suas estruturas, mas também de auto(re)conhecimento e expansão de culturas que perpassam gerações.
Identidade
“Eu sou um corpo, um ser, um corpo só/ Tem cor, tem corte/ E a história do meu lugar”, é um trecho da canção “Um corpo no mundo” da cantora Luedji Luna. A música, cujo enfoque é o corpo negro, destaca a importância da afirmação de si nos espaços e da conexão com as próprias raízes. O ponto central é a identidade.
“Eu sou escritora, poetisa, atriz, ilustradora, dançarina... A gente, com a arte, sempre tem que buscar outras vertentes, todas as vertentes possíveis nessa luta.” enfatiza a artista visual, mulher negra e periférica, Maya Amapo, 22, que relembra a dificuldade em se afirmar no meio, uma vez que, ainda na infância, já se deparava com os sonhos negados.
A recifense relata que no início de seu contato com a arte antes mesmo da escola, simples orientações de sua mãe e a casa de sua avó afloraram o interesse já existente. “Eu achei uns desenhos incríveis do meu primo. Na casa da minha avó tinha quadros. Então o contato com a arte eu tive desde sempre, eu não tinha entrado nem no colégio, tinha cinco anos e sonhava em ser desenhista”.
O reconhecimento do corpo negro enquanto detentor, produtor e transmissor de intelectualidades, é uma das formas de luta e emancipação de um país cujo governo prioriza manter os reflexos da colonização avivados. “As vivências também, as sobrevivências na verdade, vão cortando seus sonhos. Já me falaram muito que eu como preta e pobre nunca ia ser estilista na minha vida, então ali já tava limitando meu sonho”, conta.
Manifestações das periferias
Reafirmar o orgulho em estar inserido em culturas geracionais reflete sua importância na juventude das periferias - frequentemente produtora e consumidora das expressões.
Na letra de “Ponta de lança”, o rapper Rincon Sapiência se refere à importância em destacar o orgulho das origens de ritmos marginalizados no Brasil. Ele fala: “Música preta a gente assina, funk é filho do gueto, assuma”. A segregação de ritmos afrodescendentes no país encontra motivação no sistema racista, o qual, insistentemente, descriminaliza grande parte da intelectualidade produzida e transmitida por pessoas pretas. Segundo dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - de 2020 cerca de 54% da população brasileira é negra.
Para o cantor de Coco, Afroito, 28, a ampliação de vozes negras e periféricas no cenário artístico contribui fortemente para o movimento de equidade e proporcionalidade na cena. “Quando a minha arte, o que eu faço, e os meus marcadores, são comportados por espaços que anteriormente não me comportavam, possibilita trazer o recorte de proporcionalidade. Não apensas o meu mas de tantas outras pessoas que fazem a coisa acontecer aqui em Pernambuco”, enfatiza.
“Sou Afroito, sou um pensador muito casteloso, cantor, fazedor de coisas aleatórias com fins objetivos, sou pernambucano. Sou uma expectativa também, sou um desejo, sou muitas coisas”, se apresenta o artista.
O pernambucano menciona o desaforo como um impulsionador para o início da sua jornada na música: “O primeiro passo foi o desaforo, saber que tinha uma chance enorme de ser impossível mas que eu ia tentar como se fosse a minha última chance da vida”. As “chances impossíveis” comentadas por Afroito, diz respeito às dificuldades encontradas por artistas pretos da periferia na inserção e permanência em suas profissões.
É preciso reconhecer que os espaços e oportunidades concedidas aos profissionais não são iguais - independente da área de atuação. “Eu encontro dificuldade como qualquer pessoa racializada encontra em qualquer área. Ás vezes o racismo, em suas vertentes, faz com que aconteça um processo de epistemicídio, de apagamento intelectual, de invisibilização”, relata.
Retomada de espaços
Ocupar locais e fortalecer a voz em prol de conectar-se com suas próprias experiências enquanto pessoa preta periférica são formas de resistência para muitos artistas pretos em Pernambuco. Assim como o trabalho da rapper Bione, 18, artista da periferia recifense, ela conta: “Tenho minha escrita voltada pra minha vivência, pra história do meu povo e com o foco de revolucionar esse cenário machista que é o rap.”
Toda expressão de arte tem suas particularidades, motivações, interpretações e difusões. De acordo com cada grupo e o espaço que ocupa na sociedade, podem atravessar experiências singulares decorrentes de suas vivências - seja como manifesto, protesto, evocação ancestral e/ou comunicação de expressões. “Eu faço parte da massa de mulheres que, independente do que queiram seguir, cobram e lutam por equidade e valorização mesmo, porque se tem uma coisa que eu tenho certeza é que eu ‘sou boa demais pra ser ignorada’, como dizem Tasha e Tracie”.
A negritude é efusão intelectual, cultural e artística. Artistas como Maya Amapo, Afroito e Bione representam a diversidade e a força dessas expressões. Faz parte da consciência negra debater e refletir a valorização das identidades e manifestações que são fonte, meio e motivação de vivências na sociedade civil.
Texto: Luana Farias/Cendhec
Arte: Mariana Moraes/ Cendhec
Imagens:
Afroito - André Santa Rosa
Bione - Agência Lamparina
Maya Amapo - Acervo pessoal
fontes:
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