Aniversário de 32 anos do ECA: falta de orçamento faz com que direitos não saiam do papel
No dia 13 de Julho de 1989, em Brasília, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi sancionado. O projeto foi convertido na Lei Federal 8.069, publicada no Diário Oficial da União do dia 16 de julho de 1989. Até a tomada desta decisão, houve bastante mobilização e pressão popular. A sociedade civil exigia a superação do Código de Menores, aplicado à época, que tratava meninas e meninos como estorvos e tinha como principal objetivo “tirar de circulação” aquilo que atrapalhava a ordem social, os “menores em situação irregular”. O Estatuto trouxe renovação no jeito de olhar para as crianças e adolescentes, agora compreendidas (os) legalmente como sujeitos de direitos. Hoje, 32 anos depois, comemoramos a vida da lei, com a certeza de que ainda temos muito o que desbravar.
“O que eu destaco como grande avanço é que o ECA traz, na verdade, uma mudança de paradigma em relação aos direitos de crianças e adolescentes, que é o sentido da proteção integral. Para colocar a criança enquanto prioridade absoluta foram criados vários instrumentos de proteção, principalmente voltados para a prevenção da violência; para novas formas de adoção; foi criado o Conselho Tutelar; mais recentemente, em 2016, temos o Marco Legal da primeira infância; e em 2019 foi criada a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez, por exemplo”, diz Juliana Accioly, advogada e coordenadora de projeto do Cendhec. “Porém, o ECA não vai dar conta de algumas dimensões de raça. Não temos instrumentos para combater o alto índice de homicídios de adolescentes pretos. Algo que precisava ter maior intervenção, também, é a proteção de crianças indígenas, que têm especificidades. Mais recentemente podemos ver, ainda, duas grandes ameaças, o retrocesso que seria a redução da maioridade penal, algo que impacta muito, principalmente quando pensamos em políticas públicas de proteção à adolescentes pretos, e a dimensão da pandemia, principalmente no tocante a violência doméstica e os canais de denúncia.”
Ser criança e adolescente no Brasil
São mais de três décadas do Estatuto, mas, nos últimos anos, temos acompanhado uma derrocada significativa em Direitos Humanos no âmbito geral. De acordo com o Relatório Luz 2022, da Organização das Nações Unidas, o Brasil vem retrocedendo na maioria das metas relacionadas à saúde, educação e trabalho presentes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU.
O valor destinado às ações e políticas públicas impacta diretamente neste declínio. Estima-se que o governo brasileiro investe menos de R$ 5,00 por dia com meninas e meninos. O gasto social dedicado para elas e eles, diariamente, foi cerca de R$ 4,70 entre 2016 e 2019. O valor é apenas 3% do Orçamento Geral da União (OGU) e quase quatro vezes menor do que a linha de pobreza para países com níveis de desenvolvimento semelhantes ao do Brasil, que é de U$S 3,20 (aproximadamente R$ 14,70, segundo cotação de 20 de abril de 2022). Os dados constam na nota técnica “Gasto social com crianças e adolescentes (GSC&A)”, desenvolvida pelo Unicef e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no ano passado.
A integridade física deste contingente também tem ficado cada vez mais comprometida. O último levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que quase 36 mil meninas e meninos de até 13 (treze) anos foram vítimas de agressão sexual no ano de 2021 no país, dados que, apesar de estarrecedores, ainda não mostram a realidade do país. O relatório não dispõe de informações do Acre, Bahia e Pernambuco, estados que não preencheram o campo de idade simples das vítimas.
As meninas são as mais afetadas, em todos os campos. Com a necessidade de isolamento social, as vítimas ficaram confinadas por mais tempo com seus agressores, uma vez que a maior parte dos crimes sexuais são cometidos por quem deveria ser de confiança, como pais, padrastros e amigos da família. Como resultado, ao todo, 17.316 garotas de até 14 anos pariram no Brasil.
Manter relações sexuais com crianças e adolescentes nesta idade é estupro de vulnerável, e as vítimas têm a opção de passar por aborto legal. Porém, esse direito muitas vezes não é informado, ou é negado, às meninas. Este foi o caso de uma criança em Santa Catarina, que teve o procedimento dificultado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer. Com 11 anos, a menina ainda foi revitimizada pela magistrada, que fez uma série de perguntas violadoras como: “você não gostaria de escolher o nome do bebê?” e “você não suportaria mais um pouquinho?”
Educação
Um dos principais resultados da gravidez na adolescência, e do afastamento de outros direitos, é a evasão escolar. O Estatuto traz em seus artigos a proteção e o direito à Educação, mas, na prática, a aprendizagem de meninas, meninos, a estrutura das escolas e a valorização dos profissionais que trabalham nestas instituições vêm sendo prejudicadas. A três anos do fim, por exemplo, o Plano Nacional de Educação tem 45% de metas em atraso e "apagão de dados".
“O ECA é um marco muito importante, como instrumento regulatório que está para defender e proteger os direitos humanos de crianças e adolescentes. Como a educação é um direito humano é importante que a gente tenha o estatuto também como mais instrumento para essa proteção. Eu não consigo destacar avanços, nestes últimos anos, que não tenham sido da sociedade civil, que não tenham partido de instituições, organizações que lutam em prol de uma educação pública de qualidade, gratuita e equitativa. Infelizmente, eu não posso pontuar avanços do governo federal, porque vejo muito retrocesso”, comenta Paula Ferreira, pedagoga do Cendhec e ativista pela Educação do Fundo Malala.
Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a medida econômica mais drástica do mundo contra direitos sociais, a Emenda Constitucional de número 95 foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2016, instituindo o Novo Regime Fiscal, e tornando constitucional a política econômica de austeridade por vinte anos. Investimentos em saúde, educação e assistência social, por exemplo, estão congelados em um país onde a população está vulnerabilizada por uma crise política e sanitária.
“Esse corte acaba aprofundando ainda mais as desigualdades raciais, de gênero, de classe. A gente vem de um contexto de pandemia também, quando olhamos os dados de quem tem sofrido mais impacto na educação vamos ver as crianças e adolescentes negras, periféricas, quilombolas, indígenas. Temos, então, um cenário muito ruim para as infâncias e adolescências, do ponto de vista educacional e de outros direitos, como cultura e lazer. Estamos em um governo que não tem feito investimento em um campo que é primordial para, inclusive, a dignidade das pessoas humanas. Quando acessamos a educação conseguimos ter mais oportunidades em todos os aspectos na vida. Colocar na prática o que está explicitado no documento é você fazer valer os direitos. Para que possamos ver os avanços, dependemos do orçamento público, as infâncias e adolescências precisam ser olhadas de forma eficaz.”
Daqui para frente
Juliana Accioly, destaca que as leis de proteção a crianças e adolescentes passam por atualizações. “Um microssistema entrou em vigor essa semana e vai trazer algumas alterações no ECA, que é a lei Henry Borel. Ela traz mais proteção para criança e adolescente vítima de violência doméstica, e se assemelha muito à lei Maria da Penha. Ela traz alguns novos mecanismos, principalmente algumas novas atribuições para os conselheiros tutelares e também uma possibilidade de proteção a quem denuncia casos de violência doméstica contra criança e adolescente. Apostamos na implementação dela, principalmente nós enquanto centro de defesa de direitos humanos e vítimas de violência doméstica e sexual, dentro da perspectiva de medidas de proteção de casos de violação imediata.Por exemplo, tem agora uma possibilidade de afastamento do agressor do lar, que é algo que não tinha, geralmente é a criança que sai do ambiente e vai para o acolhimento institucional. Isso vai trazer uma outra perspectiva, uma garantia, inclusive, de uma de uma maior integridade para meninas e meninos.”
A advogada também afirma a importância de comemorar os 32 anos do ECA. “Eu sei que a gente acaba focando muito nos retrocessos porque temos medo de perder o que foi construído. Mas eu avalio que o ECA traz uma nova dimensão para os direitos das crianças e adolescentes, principalmente trazendo os diversos atores sociais para se responsabilizar nessa proteção e na promoção de direitos.”
“O Estatuto da criança e do adolescente é um dos marcos legais brasileiros mais reconhecidos, não apenas pelo processo de sua construção com efetiva participação popular, sobretudo de crianças e adolescentes, mas também pelo avanço no reconhecimento de direitos humanos deste contingente e do princípio da prioridade absoluta. Infelizmente, nos últimos sete anos, o Estatuto tem sido desrespeitado no contexto de golpe civil e da aprovação da EC 95, que dão início à implementação de necropolítica nos anos sucessivos de governo fascista, racista, sexista e elitista. Governo que desdenha, rasga e joga na latrina o ECA”, complementa a coordenadora do Programa Direitos da Criança e do Adolescente e coordenadora adjunta do centro, Katia Pintor. “Este ano, 2022, é o momento de virar o jogo no Brasil. Na próxima eleição temos a oportunidade de eleger representante que esteja comprometido com a democracia, com a vida de meninas e meninos brasileiros, e que reconheçam o Estatuto como legislação a ser respeitada e cumprida”.
O Cendhec
O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, entidade que também existe há 32 anos, atua diretamente na defesa de direitos de crianças, adolescentes, moradoras e moradores de assentamentos populares e grupos socialmente excluídos. Inspiradas e inspirados pelos ensinamentos de Dom Helder Camara, líder que dedicou sua vida à proteção de pessoas vulnerabilizadas, principalmente durante regimes totalitários, temos por missão contribuir para a transformação social, rumo a uma sociedade democrática e popular, equitativa, que respeite as diversidades e sem violência.
O Cendhec tem assento no COMDICA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente-Recife) e no CEDCA-PE (Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente-PE), integra a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Rede de ativistas do Fundo Malala, e prestou assessoria técnica para a construção do Plano Estadual Decenal dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente de Alagoas, em parceria do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Alagoas (CEDCA-AL). O Centro também está na vice coordenação da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos - ReBEDH (sessão PE), no Fórum DCA Recife e Pernambuco, Rede de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e na Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), entre outras articulações.
Entre as suas atuações está o projeto Teia de Proteção, iniciativa apoiada pela instituição alemã Kindernothilfe, que trata da violência doméstica e sexual contra meninas e meninos, e o Na Trilha da Educação: Gênero e Políticas Públicas para Meninas, apoiado pelo fundo Malala. Com auxílio de outros parceiros internacionais, como Pão Para o Mundo, Freedom Fund, Misereor e Selavip, o Centro desempenha ações para fortalecer a cidadania daquelas (es) que são marginalizadas (os).
Para contribuir com esse centro tão importante para os Direitos Humanos, faça uma doação:
Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social
Banco 237 – Bradesco S.A.
Agência: 1230-0
Conta Corrente: 39630-3
Código Iban: BR86 6074 0123 0000 0396 303c 1
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CNPJ. 24.417.305/0001-61
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