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Ainda há Esperança aqui


Décadas de vida silenciadas, pouco a pouco, por prédios enormes. As ruas, que antes eram banhadas por calmaria, agora ecoam o barulho de máquinas. As fachadas de casas históricas foram marcadas com números vermelhos. Rótulo que ainda insiste em aparecer, mesmo naquelas que receberam outra demão de tinta.


As famílias de Vila Esperança/Cabocó, Zona Especial de Interesse Social localizada em Monteiro, são algumas das ameaçadas de despejo em Recife, capital considerada mais desigual do país, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O motivo para a saída, apresentado pela Prefeitura, é a construção de uma ponte. Apesar do título de ZEIS, que garante ao local proteção por lei, foi autorizada a derrubada de 58 casas na comunidade, na expectativa de retomar a Engenheiro Jaime Gusmão, aparato que deve ligar o bairro do Monteiro até o da Iputinga, na Zona Oeste.


Em pesquisa da campanha Despejo Zero, é possível constatar que Pernambuco acumula mais de 17 mil famílias com o temor da desapropriação. Mais de 68 mil pessoas com o lembrete constante de que não são bem-vindas. A maior parte do público atingido é feminino. Em relatório divulgado pela Fundação João Pinheiro (FJP), de 2021, estima-se que 60% dos casos de moradia irregular são ocupados por mulheres, número que significa 15 milhões de moradias inadequadas. No mesmo levantamento está que a taxa de crescimento do indicador de precariedade habitacional foi de 7% ao ano para elas e de 1,5% ao ano para eles.


As estatísticas são importantes para avaliar, de forma racional, os impactos dessas decisões, mas nunca conseguirão abraçar todos os danos que os despejos e realocações podem causar. Porque é difícil mensurar sentimentos, é impossível contabilizar a dor. As moradoras e os moradores da Vila sabem que não dá para colocar em gráficos as infâncias, os amores, os antigos muros de papoulas que transformaram-se em alvenaria, as idas ao rio e felicidade de finalmente conquistar sua casa. Não dá para calcular o que perdem ao deixar pra trás a sua moradia, o seu local de trabalho e os vizinhos, que se tornaram amigos, que se tornaram família.


Se os números não dizem, deixem que elas falem. Para fechar março, mês das mulheres, o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social ouviu algumas das moradoras mais antigas de Vila Esperança/Cabocó, que rememoram os anos que passaram ali e afirmam o desejo de continuar.




Raquel Dalzy: “É como fincar raízes”


“Falar Vila Esperança para mim ainda é muito estranho. Vila Esperança é uma coisa nova. A gente sempre morou em Ilha Temporal. Eu sou a moradora mais velha – não de idade –, mas a mais velha porque eu nasci aqui”, diz Raquel, após abrir as portas da casa, branca e gradeada, que fica próxima a entrada de Vila, ou Ilha do Temporal, como prefere chamar.


“Nasci nessa casa, minhas filhas nasceram nessa casa, meus netos, minha neta de 19 anos... Todo mundo. Minha história é toda aqui, quer dizer, a minha mãe saiu para que eu nascesse na maternidade, mas todo o resto é aqui. Casei e fiquei. Minha mãe faleceu aqui. Tenho 64 anos, então são 64 anos nesse lugar. Quando eu cheguei em Ilha do Temporal, a rua não tinha saída, tinha um portão bem grande na frente. Ninguém entrava. Tinha pouca gente. Só quando a população foi aumentando, foi chegando outras pessoas, que se tornou Vila Esperança.”


As mais de seis décadas de habitação fez com que Raquel fosse testemunha de grandes transformações “Eu vi nascer tudo, das crianças até os primeiros prédios. Eu sei te dizer qual o primeiro prédio daqui da região. Sei te dizer ainda que ele demorou a subir porque Gilberto Freyre não deixava construir. Colocava limites. Mas depois o tempo foi passando... Hoje você vê o tamanho dos espigões, tem um aqui atrás da minha casa que a varanda dele, quando eles começarem a morar, vão me ver. Até na cozinha, se a porta estiver aberta. Eu não estou questionando o progresso, não. Acho que tem mais é que chegar, mas valorizando a gente”, aponta.


“Eu não quero sair, mas se tiver que sair, queria pelo menos sair valorizada. É uma falta de respeito. Mas ninguém respeita ninguém mesmo, ainda mais prefeitura. É uma falta de sensibilidade, de consciência. Para os mais jovens pode ser até mais fácil se adaptar, recomeçar, mas para mim, que sou mais velha, tudo fica mais difícil”, comenta, rodeada das fotos dos netos e filhas. “Quando você é mais velho quer usufruir das coisas que conquistou, não quer mais recomeçar. É como se você fincasse raiz. Eu sei que isso nem é bom, todo mundo deveria ser solto, né? Mas infelizmente é a vida. A gente não manda nos sentimentos. Não estamos preparados para isso.”




O lugar, que deveria ser de repouso, transformou-se em um campo de batalha. Uma guerra fria. Raquel vive tensa e com medo da retirada forçada. “Depois que começou a construção dessa ponte todo mundo ficou doente, desmotivado. Qualquer carro que você vê na rua fica logo pensando se é a prefeitura. Não é que a gente fique de olho na vida dos outros, mas é que a gente fica pensando “daqui a pouco é a minha vez”. Você vive assustada, com essa imposição, com essa pressão. Os nervos não aguentam. A gente não sabe medir as consequências que tudo isso vai trazer. Eu nunca imaginei que eu fosse passar por isso. Tudo, menos isso. Já passamos por várias crises aqui, mas nada desse tipo. Foram enchentes, alcancei duas ou três delas. Eu repito, não sou contra o progresso, mas sou contra a falta de sensibilidade.”


“Sei que a prefeitura nem olha isso, mas era para ter psicólogos acompanhando. Não existe esse pessoal que trabalha com o ser humano? Só vemos na teoria, porque na prática... Quando conversamos com os governantes nos sentimos pequenas, impotentes. É a sua vida, né? Não é perder um emprego, que também é difícil, mas é perder o lugar que você mora, que você construiu raízes. Já chorei muito, já fiquei doente, já fiquei querendo ter depressão”, lembra.

Perder a residência é ainda mais amargo quando ela lembra tudo que fez para registrar o imóvel. “Meus pais chegaram aqui e, segundo a minha mãe, diziam que todas as casas eram condenadas, que não prestavam para morar. Mesmo assim, meu pai saiu do Alto do Mandú e veio para essa casa. Quando fui ficando mocinha, fui querendo procurar saber o porquê a minha casa era imprópria. Descobri que não era arriscado morar aqui, só era muito antiga, do tempo dos escravos. Tinha até grilhões. As paredes são revestidas de barro e areia, mas com tijolos maciços. As telhas eu não conseguia carregar de tão pesadas”, diz. “Na época da minha mãe não tinha isso de cartório, de escritura. Comprava na palavra. Ela desconfiava que essa casa não tinha um dono legal, mas ela não sabia ler. Uma mulher do interior, os pais dela diziam que ela não precisava saber ler, só fazer comida e bordado. Meu pai também era arcaico. Não queria que eu completasse os estudos, mas a minha madrinha me ajudou e me matriculou no Dom Vital.”


Entre os 24 e 30 anos, não sabe dizer ao certo, Raquel teve contato com um senhor, em um centro espírita, que disse que poderia ajudar. “Um pouco mais velha, conheci um advogado e ele me falou que trabalhava na prefeitura e disse que ia me ajudar a fazer uma busca pelos donos dessa casa. Começamos. Ele ia em vários cartórios, e não achou o dono em nenhum. Ele sugeriu que colocássemos a casa no meu nome, pelo usucapião. Foi um anjo. Tenho toda a documentação. Foi muito demorado. Quando eu ganhei o documento ele já tinha até morrido, era mais velho”, aponta a senhora de cabelos brancos, adornado por um chapéu lilás. “Agora a prefeitura vem, toda bonitinha, e diz que é dona desse lugar, que isso aqui é invasão. Como é invasão? Eu tenho documentos. Pago água, luz, imposto, tudo. Só não pago a taxa de bombeiros porque sou isenta, onde tem desconto eu vou. Ofereceram 243 mil por minha casa. Isso não paga. Quero no mínimo 600 mil. A minha casa não tinha nada de condenada, quem estava sendo condenada era eu, por ser besta. Aqui é ótimo. Arrumei a minha casa inteira, ajeitei todos os documentos. Isso tudo dá muito trabalho, se fosse hoje eu nem iria. Só eu sei o quanto cansa. Eles querem te fazer desistir pelo cansaço.



Ela tem duas filhas e três netos, todos moram em outro lugar. Raquel é casada, mas o marido, Augusto, tem outra residência, em Vila Esperança mesmo. Ela faz questão de se apropriar de cada m² que batalhou para conseguir. “Cada um com o seu lugar”


Ela faz questão de mostrar sua residência. Apresenta o quarto que era da mãe, passou para a filha e agora virou um local para hóspedes. O outro onde ela guarda roupas e objetos em geral. E o seu espaço, o maior da casa, que tem um banner com o seu marido, uma geladeira e uma arara com mais de 20 chapéus, o seu maior vício. Na parte de traz da casa, uma surpresa. Uma piscina, mesa, um fogão de duas bocas e uma tv. Antigamente, o quintal, que hoje está coberto por concreto, tinha uma pitangueira e outras árvores, nas quais a sua mãe sentava e passava as tardes.


“Viu porque eu não quero sair daqui? Porque não quero um apartamento em um habitacional? Eu vou me desfazer de tudo isso? De todos esses anos? De todas essas memórias?”, questiona. “Quando o pessoal do Moura Dubex for morar aí vão ter que me ver aqui atrás. Só não vai ter mais sol, porque taparam.”





Jaidete dos Santos e Geane Dantas: “Querem nos tirar do paraíso”


O espaço em Cabocó, que hoje é a Zeis Vila Esperança/Cabocó, foi oferecido a Jaidete dos Santos e seu marido por um casal, que ia tentar a vida em São Paulo. Ela, na época com 25 anos, enxergou a oportunidade da casa própria e agarrou. “Eu disse para o meu marido “Manoel, vamos dar um jeito?” A casa estava toda deteriorada. Peguei uma parte do dinheiro emprestada e fiz negócio. Sempre que estávamos nos aprumando, vinham as cheias”, relembra. “Minha casa ficou completamente alagada, ainda pedi para o meu marido “vamos sair daqui pelo amor de Deus, vamos morrer afogados”, mas continuamos e refizemos a nossa casa. Por isso que digo: ela é minha. Eu levantei. Tenho escritura, tenho tudo.”


Por causa da proximidade com o Capibaribe, e a frequência das cheias, a família escolheu recuar a casa. “Passamos por muitas dificuldades, eu sempre perguntava, “e agora, Manoel?” mas ele disse que iríamos ficar. Já passei 8 dias limpando a casa, tirando a lama. Ela era de Taipa, mas eu tinha guardado um dinheirinho e tínhamos alguns tijolos, então fomos construindo por cima. Adiantamos tudo que podíamos e escondíamos com papelão, ficávamos na frente para evitar que os fiscais vissem. Mas eu consegui os documentos, consegui tudo, pago tudo. Água, luz, mais de dois mil reais de IPTU. Agora ficam me dizendo “tem que sair, aqui é perigoso, vocês querem morar debaixo da ponte?” que nada. Aqui é tranquilo, o único barulho que tem é essa obra. De cinco horas eu levanto para fazer minha caminhadinha, porque sou hipertensa e tenho problemas respiratórios, sou eu saindo e os caminhões e máquinas chegando. Começa as 5h da manhã e não tem hora para parar. Nem em final de semana.”


Foi só pensar na desapropriação que rompeu em lágrimas. Isso porque a casa de taipa cresceu, e agora o mesmo terreno acumula cinco de alvenaria, todas ocupadas por familiares. “Quando entrei aqui não tinha nem 25 anos, agora vou fazer 77. Tudo foi aqui. De todo mundo, de todos os meus vizinhos, só quem está aqui sou eu.” O seu maior medo é perder a proximidade com a família. Jaidete tem três filhos, todos nasceram lá, quando o espaço ainda não era nem considerado ZEIS.


“Me falam “vai sair, vai sair”, eu vou sair para onde? Eu comprei. Fiz. Paguei. Não devo a ninguém, muito menos a Prefeitura. Sempre que eu recebo a minha mixaria já estou pagando as minhas contas. Quando chegar numa hora dessas, numa idade dessas, me dizem que eu tenho que procurar para onde ir?”

Dentro da casa, a senhora tem um altar, do qual se orgulha. Próximo a ele reúne amigas para rezar o terço. O ambiente tem incontáveis quartos, e uma arquitetura confusa para aquelas e aqueles que não tem a sorte de conviver com Jaidete. Se conectam, se cruzam e tem uma passagem estratégica entre a sua casa e a casa da filha, para que, caso aconteça qualquer coisa, elas precisem atravessar apenas uma porta.”


Jaidete foi servidora pública por 30 anos, trabalhou no Hospital do Servidor e montou uma clínica de massagem, na sua casa, para complementar a renda. Como massoterapeuta se orgulha de já ter atendido diversas personalidades da política, como a família do senador Jarbas Vasconcelos, mas se questiona porque essas mesmas pessoas não saem em defesa daqueles menos favorecidos.


Geane Dantas é nora de Jaidete, casada com o filho caçula da mesma, e mora em uma casa erguida nos fundos do terreno da sogra. Tem 49 anos, 19 destes morando na Zeis. “Conviver com essa obra tem sido um inferno. Não tem hora. Estão varando a noite. Eu me incomodo, imagina quem vive ainda mais perto. Não tem o menor respeito.”


Mesmo com quase duas décadas no local, se considera “cria nova”. “Eu vim para cá depois que casei. Toda a família do meu marido mora aqui. Quando eu cheguei a Vila já era toda habitada, os prédios estavam baixos ainda, não tinha essa história de ponte. Nos primeiros anos foi ótimo, não tenho do que reclamar. Tenho medo é de sair daqui e ir para um lugar cheio de barulho, aqui é muito calmo. É um paraíso. Querem tirar a gente do paraíso. Comecei a conviver com a agonia há 10 anos, quando vieram nas primeiras casas avisar que iriam fazer uma ponte. Deixaram os ferros, ficou esse elefante branco aí, não fizeram nada. Agora querem retomar e tirar as famílias do lugar”, comenta.



Geane tem dois filhos, um de 18 e um de 7. “Morar aqui, perto da obra, é um lembrete, um transtorno. Não tem sossego. Você acha que de uma hora para outra você não vai mais ter o seu lugar, não só isso, mas perder a sua história, a vida. Meus filhos estudam aqui, são atendidos por médicos daqui. Meu filho mais velho é especial, autista, ele faz tratamento aqui perto e isso está apavorando ele. Pessoas que convivem com o autismo não gostam de mudanças de rotina. Mas a prefeitura não quer saber disso, só querem nos tirar."


"Eu levei papéis, dados pelo médico, para a prefeitura, mas eles não querem saber disso. Não querem saber sobre o tratamento. Temos um posto aqui que nos atende, se formos para um outro bairro, não seremos atendidos do mesmo jeito. É como se fosse cortado tudo. Se pelo menos o dinheiro que eles estão oferecendo desse para comprar uma casa no mesmo bairro, do mesmo tamanho, mas nem isso.”

Pensando nela, nos filhos, no marido, na sogra e em toda a família que usufrui do lugar, Geane completa: “Uma história de vida não se apaga assim não. Eu só digo uma coisa, para me tirar daqui vai ser trabalho. Antigamente a gente não sabia dos nossos direitos, agora que sabemos, queremos a posse da terra. O prefeito é muito blogueiro, quer ser o Romero Brito, só sabe fazer pintura. Quero saber é se ele vai cumprir as propostas que fez na candidatura, quero saber se vai garantir meu direito à moradia.”





Bernadete Miranda: “Eu não moro só”


A senhora, de 72 anos, tem dificuldade de falar sobre si. As histórias dela diversas vezes se misturam com a dos outros moradores da ZEIS. Isso porque Bernadete, ou dona Bernadete, ou Vó, é quase um patrimônio histórico. Ela tem menos anos no espaço em comparação a Raquel e a Jaidete, mas a conexão que criou com os vizinhos não transmite isso. Talvez a localização da sua residência ajude. “Tenho aqui a minha cadeirinha, coloco na frente da minha casa, que é bem na entrada aqui, e só escuto o “A bença, vó”. São como família mesmo. Já tive que ajudar famílias financeiramente, ajudei com os filhos, coloquei dentro de casa quando ficaram sem, por causa de enchentes ou porque foram expulsos.”


A pastora é conhecida por ser apaziguadora. Mesmo seguindo os dogmas cristãos, nunca se indispôs com moradores de outras religiões. Quem afirma isso é Lidiane Santana, juremeira, integrante da comissão política da ZEIS e de uma das famílias mais antigas da região. O terreiro da família Santana fica colado à casa verde de Bernadete, que tem liberdade para expressar qualquer incômodo, mas nunca precisou utilizar. Pelo contrário, em um dia que precisaram retirar as imagens das entidades para arrumar o local, Berna se ofereceu abrigo provisório. As figuras ficaram dentro de um quarto, e a evangélica ouviu de irmãos da sua religião o quanto isso era errado e estranho, mas não se importou.



Formada em Direito, ela usou dos seus conhecimentos como advogada e dos contatos que tinha no meio para auxiliar moradoras e moradores. O contato com eles nasceu por causa da filha, que achou naquele espaço a moradia que precisava e um local para montar sua loja de materiais para manutenção de piscinas. “Minha filha chegou e começou a pagar aluguel a um rapaz que se dizia dono de tudo aqui. Mas eu, como advogada, gosto de catucar tudo. Descobri que não era dono de nada, não. Não era parente de nenhum dos Temporal, os donos do engenho que existia aqui.”


Estabeleceram-se então na residência, e registraram o imóvel no seu nome. A loja cresceu e começaram a atender os moradores da região, pessoas mais abastadas e de nome de peso. Ela lembra, por exemplo, de quando a filha e o marido da mesma faziam a limpeza da piscina da família Campos. Anos depois, o genro dela faleceu em decorrência da inalação de produtos químicos, que usavam para o trabalho. A filha ficou desolada. O momento triste somou-se ainda aos primeiros movimentos para a construção da ponte. Bernadete viu a filha partir, por não aguentar lidar com todas as mudanças que estavam acontecendo.


“O piso está todo cimentado, pode ver. Ia começar a reformar, junto com a minha filha, mas falaram da construção da ponte e desistimos, não sabia se iríamos ficar ou não. Começou a confusão, íamos reformar para que? Tínhamos planos de fazer uma parte de cima, para agregar mais pessoas da família, e eu ficaria embaixo, por causa da idade. Queria ficar com essa casa porque aqui temos história, temos luta.”

Ao contrário de outras casas da região, o imóvel de Bernadete não recebeu um lance, por mais que tenha sido marcado com letras vermelhas. “A mim nunca vieram oferecer dinheiro, porque a primeira vez que chegaram aqui com engenheiros e para fazer recadastramento eu neguei. Eu não quero ser mandada pelo PSB, eu sou uma mulher de 72 anos. Sei onde meu nariz entra. Eu conheço aquela família há muito tempo. Sei quem são.”


A filha partiu para o interior, Bernadete ficou. Dentro da sua casa gosta de falar em voz alta com Jesus, sua principal companhia, mas fora tem sempre mãos estendidas para ela, assim como se doa para ajudar. “Eu não fui com ela porque gosto daqui. Porque não quero ficar longe da minha religiosidade. Não quero ficar longe das outras pessoas que amo. Vão ter que me aguentar até Jesus me chamar”, aponta.




Valdilene Ferreira: "Alguma coisa boa vai acontecer"


A primeira vez que Valdilene Ferreira pisou em Recife se apaixonou. “Vim na adolescência, com uma prima. Virou meu sonho morar aqui. Acho que Deus já sabia.” Nascida em Camocim de São Félix, Valdilene voltou à cidade para trabalhar. Alojou-se em casas de família, fazia comida, cuidava das crianças, faxinava. Dormia na casa dos patrões.

“Eu trabalhava nas Graças. Conheci o pai das minhas filhas por causa desse trabalho. Eu levava a filha da minha patroa para a natação, lá no Náutico, e ele levava a filha do pessoal para quem ele trabalhava também”, comenta. “Nossos patrões se conheciam. Ele ficava olhando pra mim, eu olhava pra ele, mas não dava muita atenção. Depois uma senhora, de mais idade, chegou para mim e disse “aquele menino é muito lindo, se eu fosse jovem namorava com ele”, aquilo ali me despertou o interesse. Não é que eu me apaixonei? Foi difícil começar, nos víamos lá no Náutico, mas às vezes eu ia e ele não. Foram muitos desencontros.”


Mas Valdilene insistiu. Decidiram ficar juntos, formar família. “Estávamos procurando um lugar para morar e ele que teve a ideia de vir pra cá, nem falou nada comigo, fez surpresa. Quando vi já estava negociado. Conhecemos a casa juntos e, apesar dela ser pequena, eu me apaixonei. Foi muito trabalhoso. Eu ganhava um salário mínimo e ele pouco mais que isso. Tivemos que contar com a ajuda dos patrões. A patroa dele tinha acabado de comprar uma casa, foi reformar e doou algumas peças que ela tinha lá. Deu madeira, para a gente conseguir construir.”


A primeira casa foi perto do rio, nos fundos da Vila. Pela primeira vez, já em Recife, a cidade que virou o seu sonho, Valdilene pôde dormir um uma casa que considerava dela.


“Foi uma conquista. Ela era de taipa, não tinha piso no chão, era barro. Meu marido mandou rebocar as paredes, mandou cimentar. Eu fui muito feliz. São lembranças boas, lembranças de um lar.”

Depois do nascimento de Helena, a primeira filha, um ano depois, decidiram buscar um outro espaço. O lugar onde mora agora é adornado com antiguidades, plantas e abriga o seu material de costura. “Foi muito trabalho, foi muita luta. Quando saímos da primeira casa e viemos para essa a estrutura era de tábua, ou seja, precisamos fazer tudo outra vez. Levantar parede por parede. Foi uma outra conquista. Tinha terra na frente, um muro de papoulas, me sentia um pouco no interior onde nasci.” Na parte de cima da sua casa, a primogênita fez o seu lar, onde mora com o marido. Para a mãe, é um alívio tê-la tão perto.


Ao falar da ameaça dos despejos, não conteve a emoção.

"Quando eu soube da desapropriação fiquei doente, eu fico doente porque é muito difícil morar em um lugar, construir e depois, quando a gente pensa que vai sossegar, que vai melhorar, as coisas ficam assim. Estou assustada, não tem como não se assustar. Mas eu confio em Deus e na vitória. Não sei como Ele vai fazer, mas ele vai dar a vitória para todos aqui dessa comunidade”.

“Graças a Deus a minha filha tomou a frente, junto com Lidiane, elas tem mais estudo, tem mais cabeça. Nós, mais velhos, estamos cansados já. Para os governantes, deixa um recado: “Queria que olhassem para a gente com mais carinho. Que o Poder nos olhasse com misericórdia, que se colocasse no nosso lugar. Foi uma vida toda lutando para mudar para melhor, mas agora querem fazer essa ponte que só vai nos atrapalhar, tirar o nosso sossego. Valor nenhum conseguiria comprar a vida que tivemos aqui. Mas tenho muita Esperança, muita confiança. Não é à toa que essa Vila se chama assim, alguma coisa boa vai acontecer.”





Ainda há vida aqui


Vila Esperança/Cabocó conta com uma comissão política, da qual Lidiane Santana e Helena Ferreira, filha de Valdilene, fazem parte. “Estamos esperando novidades, marcaram audiências com a gente, mas foram canceladas. Estou aguardando resposta do Ministério Público, da Defensoria e Prefeitura”, explica.




“Não voltaram a pintar nossas casas, acho que perceberam que não são bem recebidos. O último levantamento foi feito na semana do Natal, queriam fazer um mapeamento das casas que faltaram. Queriam que eu acompanhasse, mas neguei. Eu disse que era semana de natal, que queríamos confraternizar, e que achávamos que isso estaria pausado nessa época. Falei que se ele quisesse ir, tudo bem, ninguém ia maltratar ele não, mas que eu não ia fazer parte disso”, completa a maquiadora.



Enquanto as reuniões não acontecem e as devolutivas não chegam, a comunidade se move para cuidar das suas e dos seus. “Organizamos um circuito de palestras, que começam no dia 13 de abril e findam no dia 6 de maio. Serão encontros com psicólogas, conselheira tutelar e a última será com Gleide Ângelo. Queremos tirar, do pessoal da Vila, o foco só dessa ponte. Estamos vendo quantas pessoas estão adoecendo. Muita gente está vivendo em função disso, está entrando em depressão, recaíram no alcoolismo. São problemas que vão além das casas, além da ponte, mas que o prefeito não mostra nas redes sociais.”


As programações serão divulgadas nas redes sociais do local, que podem ser encontradas por @zeis.vilaesperanca e @resistevilaesperanca.


Texto: Mariana Moraes

Fotos: Marlon Diego

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