“A sensação é que somos invisíveis”: como estão as vítimas da última tragédia ambiental no Recife
Moradoras relatam abandono governamental, após o maior desastre socioambiental de Pernambuco
Basta o céu estar cinza e repleto de nuvens que o sossego de muitos habitantes se esvai. É o sinal de que a temida chuva pode cair. Se as gotas caem à noite, o resultado é certo: o sono é substituído por medo e preocupação.
Segundos. Esse foi o tempo em que Miriam Silva, de 54 anos, viu a casa de seus vizinhos desaparecer junto com água, lama e lágrimas, na comunidade de Jardim Monte Verde, no município de Jaboatão dos Guararapes. O acontecimento foi em 2022, na considerada a maior tragédia socioambiental do Estado, que vitimou mais de 130 pessoas no Grande Recife.
Mais de um ano depois, o cenário, no entanto, parece não ser diferente: o rastro de destruição ainda deixa marcas na vida dos moradores, especialmente os que vivem nas chamadas áreas de risco.
Ano passado, mais de 125 mil pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas, sem perspectivas de voltas para os seus lares ou de ações para mitigar os impactos da emergência climática. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), mais de 25% das mortes causadas pelas chuvas, nos últimos nove anos no Brasil, ocorreram em 2022.
Miriam, que desde a década de 80 mora no bairro, conta como, até hoje, o dia 28 de maio de 2022 ficou marcado em sua memória. Após vários dias de chuvas constantes e intensas, a data representou o início da agonia e aflição com as famílias na comunidade.
“Eu estava dormindo. Acordei com um áudio de uma colega do trabalho dizendo que a sua família estava morrendo soterrada e me pedindo ajuda porque não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo, escutei dois barulhos ao lado: eram as casas dos meus vizinhos desabando. Outra vizinha chegou na minha porta, com quatro filhos pequenos, com medo. A barreira tinha caído e levado parte da sua casa, onde era o quarto dos meninos. Ela saiu correndo e veio para cá. Foi segundos. A gente imagina que dá tempo correr ou fazer alguma coisa, mas não dá. É muito rápido. Até hoje eu fico angustiada”, relata.
De modo semelhante, Joelma Andrade, moradora do Ibura de Baixo, na comunidade Paz e Amor, também foi acordada pela tragédia. À frente do Centro Comunitário Mário de Andrade Lima, acolheu mais de 200 pessoas, no período chuvoso do ano passado.
“Durante quatro meses, eu saía às 7h da manhã e voltava às 2h da manhã, do outro dia. De domingo a domingo, atendendo, em média, 39 famílias. Deixei minha casa para cuidar delas”, diz Joelma.
Com a chuva, toda a área territorial é afetada, entretanto, algumas localidades sofrem com mais intensidade. Na verdade, toda a situação parece ter uma cor em comum. Um alvo apontado para quem é preto, pobre e periférico. Lorena Melo, assistente social do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec), revela possíveis razões para essa causa.
“Para compreender este perfil é necessário olharmos para o processo de desenvolvimento do capitalismo nas cidades, articulado ao processo sócio-histórico do racismo na sociedade brasileira. Estas são questões diretamente relacionadas ao gênero, pois quem mais sofre e sofrerá com as mudanças climáticas são as mulheres, pretas e pardas, idosas/os, crianças, adolescentes, jovens e pessoas com deficiência; tornando-as/os pessoas mais suscetíveis aos contextos de crise socioambiental”, aponta a assistente social.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Recife é a cidade mais vulnerável do Brasil à elevação do nível médio dos oceanos, e a 16° do mundo. O dado revela as consequências do racismo ambiental que assola e proporciona o aumento das desigualdades sociais e econômicas em relação às enchentes.
Em Jardim Monte Verde, área limite entre Recife e Jaboatão, foram mais de 20 mortes, segundo informou o Corpo de Bombeiros, ainda no primeiro dia de buscas. Estes são os
dados oficiais, que conta com as vítimas encontradas em escombros, ou acidentes, mas que não consegue mensurar as mortes decorrentes de outras vulnerabilidades trazidas pela chuva, como a ocorrência de leptospirose, por exemplo. Para Miriam, o sentimento é de que a população foi esquecida pelo poder público, que governa e decide de forma verticalizada.
“Não há um diálogo. A gente não sabe o que é drenagem, não entendemos como organizar as forças negras e nem como canalizar as águas de serviços. Não existe orientação. Pensei que Monte Verde iria servir de exemplo para outras comunidades e estados, mas não estou vendo nada disso. Não dá mais para vivermos fragmentados. Queremos que a vida das pessoas seja preservada. Que direitos são esses que não estão sendo acessados?”, questiona Miriam Silva.
Informações que deveriam ser básicas e disponibilizadas para todos os moradores não chegam. Iniciativas que poderiam melhorar o território não são feitas. Segundo Miriam, abandono é o que mais se registra no espaço. “Ninguém escuta a gente. Parece que pobre não pensa, não sente e não fala. Mas a gente sabe falar e dizer o que precisamos. Então, quando chove, ficamos tensos e angustiados. Todo mundo sabe o que pode acontecer”.
“O local nunca teve um saneamento básico, o canal não é limpo, as canaletas estão entupidas. Fui à Prefeitura para que essas pessoas pudessem ter acesso aos auxílios, porque ninguém fica no abrigo por opção. É um descaso total. Mais de um ano que eu venho pedindo tudo isso, porque é direito nosso. Minha vida no Centro é essa: fazer o papel que o poder público não faz. Nossa luta é pelo direito de viver com dignidade, porque, infelizmente, não temos isso”, diz Joelma Lima.
Identidades, lembranças e histórias se tornam reféns da necropolítica, que não considera que a retomada da vida das pessoas vai além do material. O lar, a moradia, a casa é, também, o encontro do afeto e da sensibilidade. E como seguir e ignorar a latente dor que insiste em relembrar que tudo pode acontecer novamente?
“Isto me remete à palavra resiliência, que comumente é reduzida à capacidade individual, mas que contrário a isto, requer uma estrutura concreta de condições que possibilitem às pessoas enfrentarem e superarem as dificuldades sem danos severos, neste caso, em seus territórios. Neste sentido, o que a equipe do Cendhec presenciou no inverno de 2022, assim como em anos anteriores, e o que estamos presenciando a cada contato com os territórios, é que reconstruir a vida é para poucas pessoas”, comenta Lorena Melo.
Crises climáticas não anulam a negligência governamental
O estudo Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental, feito pelo Instituto Pólis, demonstra que, na capital pernambucana, aproximadamente 55% da sua população é negra. A taxa, no entanto, sobe para 59% nos locais que estão sujeitos à inundação; e pode chegar a 68% nos lugares de deslizamento.
Apesar do Recife ter reconhecido o estado de emergência climática desde 2019, as catástrofes têm endereço certo. Em setembro de 2022, o município ocupava o terceiro lugar no ranking de capitais desiguais no país. As informações são do Boletim Desigualdades nas Metrópoles, que aponta que 52% da população recifense vive abaixo da linha da pobreza ou na extrema pobreza. Ou seja, o que observamos é que existem várias cidades dentro de apenas uma.
A interferência humana na natureza resultou em mudanças climáticas, que inflamam, muitas vezes, os desastres ambientais. A rede World Weather Attribution estudou o assunto no Brasil, e apontou que as fortes chuvas que atingiram o estado em 2022, foram fortemente influenciadas pela mudança de clima, causadas pelo aumento da temperatura na terra e o aumento do efeito estufa. Por essa razão, as chuvas tornaram-se 20% mais fortes do que seriam.
A tendência é que esses números se tornem frequentes. Por isso, a sociedade civil insiste, de modo constante, na mobilização para implementação de políticas públicas que garantam, pelo menos, o mínimo de segurança para os mais vulneráveis.
“Existem diversas medidas que poderiam ser feitas, mas, ao mesmo tempo, elas não são pensadas para a população preta, pobre e periférica do Recife. Essas questões partem do déficit habitacional, em que deveria ser dada a opção de moradia em local seguro, para que não fosse preciso estar em ocupações irregulares que trazem riscos. Nessas condições não se vive, apenas sobrevive. Os paliativos feitos nos morros e encostas já não estão suprindo a necessidade da população. É uma quantidade muito grande de chuva para uma cidade que, também, não tem feito uma política adequada de saneamento”, desenvolve Cristinalva Lemos, assistente social do Cendhec.
Chegamos à quadra chuvosa deste ano sem muitos avanços. Pelo contrário, a situação parece se repetir. O Plano de Contingência de 2023, planejamento que direciona procedimentos e decisões na ocorrência de desastres, foi divulgado de forma tardia, já no fim do mês de abril, afetando diretamente a população.
No início deste mês, junho, Joelma Lima teve prejuízos com a sua casa. “Estávamos almoçando e deu um vento muito forte, seguido de um barulho. Eu comentei com meu marido: ‘será que esse telhado vai ser derrubado?’. Só foi ele sair de perto que o vento veio e levou tudo. Me desesperei na hora. Foi um livramento muito grande do meu marido e das minhas filhas”, exterioriza.
Apesar do termo ‘justiça climática’ ter sido adotado, não responde ou justifica as ações esvaziadas; e tampouco valida o afastamento político dessas áreas, como explica o advogado e coordenador do Programa Direito à Cidade do Cendhec, Luís Emmanuel.
“A falta de políticas de urbanização no sentido mais amplo é um exemplo do esquecimento político das áreas e das pessoas em maior situação de vulnerabilidade social. O protagonismo político acontece diariamente. Já essas regiões da cidade apenas são ‘vistas’ a cada dois anos, durante as campanhas eleitorais. A atuação dos coletivos locais, de movimentos sociais e de organizações da sociedade civil vem para estimular esse protagonismo; e como as lideranças e juventudes locais têm a ajudar na construção de soluções para esses problemas”, assegura o advogado.
Lorena Melo defende a integração dos setores públicos para prevenção e adaptação diante desse cenário climático. “A agregação às políticas sociais, como Defesa Civil, Assistência Social, Previdência Social e Segurança Pública devem ser executadas com planejamento, recurso e controle social. Esta proposta não é novidade, é algo previsto em diversas legislações, planos, programas e projetos e sistemas informatizados que não foram executados efetivamente pelo poder público”, argumenta.
Direito humano à moradia é ignorado no Recife
Os inúmeros problemas urbanos como a falta de saneamento básico, a devastação das áreas verdes, a poluição, a falta de água potável e possíveis doenças que propagam essa contaminação, derivam da falta de moradias adequadas e seguras para todas as pessoas.
Na teoria, esse direito está assegurado a todas e todos. Contudo, o dia a dia de quem está nas margens de uma política urbana é bem diferente. As vulnerabilidades expostas mostram uma cidade defasada e que não é capaz de cuidar de seus moradores. Ninguém escolhe morar em área de risco, mas as vidas e memórias continuam sendo manchadas pelo descaso público.
“A história da cidade do Recife é construída na lógica de políticas de gentrificação, ou seja, a valorização do espaço urbano foi acontecendo através da segregação de populações que residiam em áreas centrais da cidade. Com isso, as pessoas moraram e moram onde dá. As Políticas de Habitação implementadas reduzem o direito humano à moradia adequada, simplesmente com a aquisição ou regularização de um imóvel. E é desta forma que as condições de vida vão se tornando ainda mais difíceis, pois um direito que deveria ser universal, e mesmo sendo constitucional, é violado cotidianamente”, declara Lorena Melo.
Histórias como as de Miriam e Joelma acontecem todos os dias. Não são apenas números; são pessoas, famílias, que se tornam vítimas da indiferença governamental e política.
O levantamento mais recente do Recife sobre a falta de moradia é do ano de 2018, localizado no Plano Local de Habitação de Interesse Social (PHLIS). As informações desatualizadas refletem a falta de interesse público em debater e concretizar medidas. Em maio de 2022, o portal G1 revelou, segundo dados oficiais da prefeitura, que o Recife tem um déficit de 71.160 moradias. Sem alternativa, pessoas buscam prédios ou casas vazias para morar de forma improvisada, enquanto aguardam as promessas de construção de habitacionais - que, também, não sanam todas as problemáticas que circundam o assunto.
Para Cristinalva Lemos, o retrato, cotidianamente, é de acessos impossibilitados. “O poder público trata pessoas como indigentes. Essa inércia faz com que tenhamos uma política pública sucateada de educação, saúde, moradia e geração de emprego e renda. Infelizmente, a população do Recife vive muito mal e, todos os dias, os seus direitos são violados”, estabelece.
A atuação do Cendhec na defesa de Direitos Humanos
Atividades práticas com as juventudes organizadas pelo Programa Direito à Cidade do Cendhec. Foto: Arquivo DC
A defesa da vida acontece com o apoio da sociedade civil, em especial daquelas e daqueles que lutam para, um dia, ter um teto todo seu. O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, ciente dessa importância, trabalha para contribuir com essa garantia, estando presente em Audiências Públicas, realizadas na Câmara dos Vereadores do Recife e na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), em diálogos com movimentos e coletivos sociais, e em reuniões com encontros populares para dialogar sobre essas questões.
“O Programa Direito à Cidade do Cendhec tem feito o trabalho de controle social, acompanhando a mobilização das autoridades públicas competentes quanto às soluções adequadas para as regiões de maior perigo e risco para que situações, como a do ano de 2022, não se repitam. Além disso, a construção de soluções definitivas, adequadas e dignas é o nosso horizonte de solução buscada”, explicita Luís Emmanuel.
Os dias passam, as gestões públicas assumem cargos e o tema segue sem ser pautado. Os pedidos para que o poder público cumpra sua função não são de agora, como evidencia Lorena Melo.
“A falta de uma estrutura adequada para acolher as vítimas também é resultado de como o poder público não prioriza a realidade gritante das populações que vivem em áreas vulneráveis e de risco dos territórios. As políticas assistenciais de emergência devem observar a integridade das pessoas como cidadãs/os, pois os relatos que ouvimos e registramos em missões-denúncia do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil sobre as Chuvas (GT-Chuvas), são de situações vexatórias para acesso à recursos (monetários e/ou cestas básicas) e a incerteza se receberiam algum suporte das respectivas prefeituras ou do estado”, descreve. “É neste contexto que muitas/os vizinhos, amigos e parentes fazem as ações emergenciais de acolhimento, abrigo e cuidado quando muitas/os não conseguem ser vistos pelo poder público como demanda a ser atendida com urgência”.
Fruto da articulação do GT-Chuvas, o documento ‘Uma Tragédia Anunciada: Dossiê Popular sobre a Negligência do Poder Público e os Impactos das Chuvas no Recife e Região Metropolitana’ expôs as situações de risco e perigo, ao tempo que demonstra a omissão das autoridades públicas.
Clique aqui para acessar o dossiê completo.
Não ofertar políticas públicas para quem mora em áreas vulneráveis resultou em perdas irreparáveis. Por isso, com intuito de honrar a memória dos que se foram e, emergencialmente, cobrar por medidas e ações, foi organizado o Ato 28 de Maio. Participaram familiares, amigos e diversos coletivos que caminharam, em marcha, para o Marco Zero, no centro do Recife. Relembre a nossa participação aqui.
Não é possível ter de volta as vidas que se foram. Ainda assim, a pergunta permanece a mesma: há solução para minimizar a dor da população que, de alguma forma, foi afetada? O advogado Luís Emmanuel e a assistente social Cristinalva Lemos comentam o que pode ser feito.
“Solução há, sem dúvida, e passa pelo acesso à terra urbana. No Recife, 60% do seu território está na informalidade jurídica. Essas pessoas precisam sair da informalidade territorial e terem seus direitos de propriedade reconhecidos e regularizados, mas sem se esquecer de situações históricas a serem corrigidas: desigualdades social e de gênero, racismo estrutural e ambiental”, diz o advogado.
“A política efetiva está sendo feita muito aquém do que precisamos para as famílias que moram em áreas ribeirinhas e em áreas de morros e encostas. É preciso investir mais recursos na construção de muros de arrimos, na manta geotérmica, que não resolve o problema, mas minimiza o impacto, evitando que o solo seja encharcado. Estamos nesta luta desde o ano passado e iremos continuar porque a culpa não é apenas da chuva. Por isso, o Cendhec tem estado junto com outros parceiros para que possamos minimizar o que as famílias vêm sofrendo com essa emergência climática”, finaliza a assistente social.
Texto: Maria Clara Monteiro/Cendhec
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