Direito à educação no contexto da COVID-19 em Pernambuco: entre políticas emergenciais e os riscos d
Ilustração: João Lin
Por Michela Albuquerque
Em colaboração com Paula Ferreira
Após quase 3 meses de isolamento social e 15 dias vivenciados no isolamento rígido, o mês de junho inicia com o estado indicando período para transição a um propagado “novo normal” - e com “normal” sendo termo em disputa: afinal o que estava normal antes da pandemia e para quem? Com todos os agravamentos observados pela COVID-19, e antes dela, qual perspectiva de “normalidade” social, econômica, sanitária, educacional, de direitos humanos acionar?
A escrita deste texto se dá num presente circunscrito à ideia de “em transição”. Assim, trará afirmativas, porém, muito mais, questionamentos, ponderações, alertas e preocupações. Mas é uma escrita que se justifica pelo compromisso de pensar proposições, ações, incidências.
Situado no campo dos direitos humanos e, em específico, dos direitos de crianças e adolescentes, este é um texto marcadamente sobre educação ser um direito essencial e sobre a radicalidade em afirmar isso hoje - num país e num estado onde as desigualdades já estavam instaladas e foram (estão sendo) agravadas e ampliadas no contexto da pandemia COVID-19. Entendemos, então, como necessária certa radicalidade em asseverar a garantia do direito à educação como premissa e pensar o que isso envolve - quais esforços empreender, de quais naturezas efetivamente são e quem implicar.
No decreto Nº 49.055 de 31 de maio de 2020, o governo do estado mantem restrições relativas ao isolamento social, mas flexibiliza a quarentena rígida, iniciada em 16 de maio no Recife e quatro municípios da RMR. Também anuncia plano de reabertura gradual de atividades ao longo de 11 semanas e retoma, em 1/6, as aulas remotas, em modalidade EaD (internet, tv, outros suportes), cujo início se deu em abril e suspensas de 15 a 29/5 em antecipação ao recesso escolar. Mas não formaliza, ainda, se as horas de conteúdos remotos comporão carga horária do ano letivo 2020. As aulas de Ensino a Distância seguem até 30 de junho – mês que iniciou com o “tom” da flexibilização sendo dado pelo Plano de Convivência / Atividades Econômicas COVID-19 do Governo do Estado. E com ecos de muitas vozes se perguntando: para além da economia quais passos e medidas foram e estão sendo tomadas e por quem estão sendo pensadas? Assim, definições, modos de construção de caminhos, parecem também refletir a instabilidade contextual que desafia a nomear, organizar e planejar o momento, pensar o futuro num presente cercado de incertezas.
Os impactos da pandemia nas diversas instâncias da vida social, comunitária, no cotidiano familiar, nos contextos profissionais, na dimensão emocional e psíquica são inegáveis. Foram e estão sendo diariamente experienciados, debatidos e visibilizados – embora, ressalve-se aqui, exclusões que marcam parcelas significativas da população ainda não deixam ver reais impactos sofridos por alguns grupos. Na educação não é diferente. Nas aprendizagens conteudísticas /curriculares em si, nos aspectos simbólico-subjetivos, afetivos, nutricionais (a alimentação escolar é imprescindível à expressiva parcela de estudantes das escolas públicas), nos territórios (periferias urbanas e rurais), nas dimensões étnicos/raciais, profissionais (pensemos nos/as trabalhadores/as da educação): há impactos.
Como, então, retomar o calendário letivo?
No momento, portanto, várias questões permeiam os rumos da educação no país e em Pernambuco. Chamamos atenção, no estado, para duas delas e, a reboque de ambas, visibilizaremos outras com as quais se implicam e relacionam: 1. O ano letivo, sua carga horária (800 horas) e dias letivos (200 dias), considerando se as atividades não presenciais/EaD (conteúdos ministrados por meio de tecnologias da informação e comunicação: em plataformas digitais, vídeos, rádios, material impresso) realizadas até então pelo estado, e alguns municípios, contarão como carga horária do ano em curso – e se contarão, em qual percentual serão admitidas. Cumpre lembrar que em medida provisória o Governo Federal flexibilizou, ainda em abril, os 200 dias letivos de aulas presenciais, delegando as providencias para cumprimento da carga horária aos critérios dos governos – sistemas de ensino. A decisão se aplica às modalidades pública e privada e ao ensino básico e superior. 2. A retomada das atividades presenciais, com base em critérios que, de fato, assegurem a saúde dos/as estudantes e profissionais das escolas – se estes estão sendo pensados/planejados, de que forma (escuta ampla?) e qual o investimento de recursos prevê-se fazer para que tenham efetividade.
Em Pernambuco, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP temos hoje 1.033 escolas públicas estaduais e 4.388 municipais. Dados do número de estudantes matriculados em 2020 ainda não estão disponibilizados, mas em 2019 registrou-se - incluindo as escolas públicas estaduais, particulares e escolas federais - em 1.558.808 o número de estudantes. 1.980 escolas compõem a rede particular no estado e 346.701 estudantes - do ensino fundamental (anos inicias e finais) e médio a elas vinculados. Ainda de acordo com o INEP/2019 são 97.150 docentes atuando hoje no ensino básico na educação estadual em Pernambuco.
Os números em si indicam que educação é volume, quantidade, campo de grande escala. Mas os números em perspectivas outras também revelam: educação é campo de heterogeneidades, diversas realidades, complexidades: são muitas as infâncias, adolescências, juventudes.
E é aqui, nesse ponto, que voltar a premissa da radicalidade de fazer cumprir o direito a educação necessita ser retomada e reafirmada. Se este direito tem como um dos lastros (outros fatores, atividades, dimensões estão essencialmente envolvidos) o acesso aos conteúdos e, a partir deles, as aprendizagens, verificáveis por meio de avaliações, que por sua vez possibilitam a progressão dos/as estudantes, o que significa essa premissa quando os meios não são acessíveis a todos/as?
Assim, tomando acesso como elemento de garantia do direito à educação, vale aqui esmiuçá-lo. Pesquisa TIC Domicílios (Cetic, 2019) aponta que a conexão domiciliar, via internet, está presente em 71% dos domicílios brasileiros, porém mais de 20 milhões de casas não possuem este tipo de conexão, realidade que afeta especialmente a região Nordeste (35%) e famílias com renda de até 1 salário mínimo (45%). E dados da Pesquisa por Amostra Domiciliar Contínua (PnadC) de 2017, frente às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), demonstram, em Pernambuco, a realidade do acesso: computador / tablet em casa: 37%; internet em casa: 68%; banda larga em casa: 56%; comutador / tablet com banda larga em casa: 34% . Também verifica-se pela PnadC 2017 que entre os/as estudantes da rede pública do país vinculados ao ensino fundamental 31% tem acesso a computador/tablet e banda larga em casa. Nas escolas privadas são 77% dos/as estudantes que têm esse acesso garantido. No ensino médio os percentuais apontam: 42% de acesso a computador/tablete e banda larga nos lares de estudantes da rede pública, face a 83% no mesmo segmento das escolas privadas.
Atualmente a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco disponibiliza aulas pela internet (canal no youtube), canais de TV e estuda também veicular conteúdos pelo rádio. Na terça 3 de junho lançou os primeiros podcasts destinados ao ensino médio. Na sexta 5/6 a Prefeitura do Recife anunciou o projeto Escola do Futuro em Casa, um conjunto de iniciativas que propagam a igualdade de acessos ao EaD. Na segunda, 8/6, a medida é implementada junto a 10 turmas do 9º ano do fundamental. E, em paralelo, a gestão municipal lança campanha de doação de aparelhos com a configuração exigida para acesso à plataforma na qual as aulas remotas são oferecidas.
Entretanto, o acesso aos conteúdos não caminha só, não é única via que diga respeito à aprendizagem. É preciso considerar, para que aprendizagens significativas se efetivem, a mediação e acompanhamento desse acesso partilhado pelas plataformas virtuais e por outras vias. E é preciso visibilizar que uma gama imensa de estudantes necessita dessa mediação. No atual contexto, a tarefa é delegada a pais, mães e outros responsáveis. Mas em quais condições?
Ilustração: João Lin
A Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, rede que articula centenas de grupos e entidades distribuídas por todo o país, chama atenção, no Guia COVID-19 sobre Educação à Distância, para aspectos socioeconômicos, territoriais, cognitivos e motores (educação especial) dos/as estudantes, bem como de escolaridade das famílias, destacando, com dados da Pnad de 2017, o seguinte: para aqueles/as que vivem com estudantes do Ensino Fundamental, 21% tinha até o ensino fundamental incompleto, 21% o fundamental completo, 37% o ensino médio, 5% superior incompleto e 16% tinha formação em nível superior. Também o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente em manifesto de 20 de maio de 2020, sobre o Direito à Educação de Crianças e Adolescentes Durante a Pandemia do Covid-19, chama atenção para o fato de ainda haver “38 milhões de pessoas em analfabetismo funcional no Brasil, realidade que impacta de forma ampla o apoio à educação de crianças e adolescentes das famílias em casa.”
Em Pernambuco, segundo o censo escolar de 2019: 7.187 estudantes compunham os anos iniciais do ensino fundamental e 140.344 os anos finais em escolas estaduais.
Já nas redes municipais os números apontavam: 491.144 estudantes nos anos iniciais e 299.433 nos anos finais. Registrando, portanto, um contingente expressivo na faixa etária entre os 6 e 15 anos de idade, tendência que deve se equiparar em 2020, e indicando a necessidade de forte presença, mediação, no acompanhamento de atividades formativas, como as aulas remotas.
No país, também como destaca a Campanha Nacional pelo Direito a Educação: são 1.250.967 alunos da educação especial, que têm direito ao Atendimento Educacional Especializado; 157.448 Indígena; 5.328.818 estudantes da educação do campo.
Em outra frente, a questão do acesso e do acompanhamento das atividades dos estudantes em casa, não pode deixar de ser vista sem considerar a estrutural desigualdade de gênero instalada no país. É expressiva a quantidade de lares monoparentais liderados por mulheres - que se dividem entre as inúmeras tarefas cotidianas do cuidado (casa, idosos, crianças), na maioria das vezes acumuladas com trabalhos precarizados, ou, quando não exercem, essas mulheres, profissões também tidas como de cuidado: enfermeiras, babás, empregadas domésticas, entre outras.
Em artigo do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Publicas - Mulher (NAPP-Mulher) da Fundação Perseu Abramo, indicando dados da Previdência Social de 2018, menciona-se que as mulheres representam 59,4% dos amparos assistenciais às pessoas idosas, 46,8% dos amparos assistenciais às pessoas com deficiência e 81,6% dos dependentes urbanos de pensões por morte. Uma indicação clara da maior exigência sobre as mulheres no atendimento aos cuidados.
É essencial considerar, ainda, na reflexão sobre recursos EaD em escala nas redes de ensino, o fato de expressiva maioria da profissão docente no ensino básico, sobretudo na educação infantil e fundamental, ser exercida por mulheres – cujas rotinas estão permeadas dos acúmulos já mencionados com o trabalho reprodutivo. São elas também as mesmas profissionais instadas a realizar atividades (a “se reinventar” como tanto propaga quem defende a prática EaD) e utilizar recursos tecnológicos, remotos, num processo que exige aparato que as professoras (e também professores) em quantidade expressiva não têm, não acumularam em suas práticas pedagógicas que encontram na presença uma fortaleza. No país, conforme o NAPP-Mulher da Fundação Perseu Abramo, são 15 milhões de mulheres professoras do ensino fundamental.
Em outro recorte de gênero, o geracional, são as meninas, adolescentes e jovens que, forçosamente, muitas vezes reproduzindo a estrutura desigual, na reorganização das tarefas domésticas - em momentos como esses que a pandemia e o isolamento impõem - também acabam assumindo mais as atividades de cuidado: de irmãos menores, idosos, limpeza da casa, cozinhar, fato que impacta no seu próprio tempo disponível de estudo.
Cabe lembrar ainda que pensar a educação pública hoje no país, é, além do recorte de gênero, necessariamente refletir sobre questões de raça, classe e território. Falamos, portanto, do fato da escola pública ser formada por estudantes em sua maioria negros/as e pardos/as, oriundos da classe popular (urbana ou rural). Desse modo, no contexto da pandemia da COVID-19, afirmar que as aulas remotas/EaD se justificam por serem meio que visa garantir o direito à educação é uma parte da verdade, ou da realidade – posto que a radicalidade desse direito só pode ser compreendida com o acesso, e a observância de outros fatores envolvidos, efetivamente sendo pensado e assegurado a todos/as.
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Michela Albuquerque é jornalista e integra a equipe do Programa Direitos da Criança e do Adolescente. Paula Ferreira é pedagoga do Cendhec.